• Traduzir Mylène Desclaux

    O título que dei a este post não é exato, pois sugere a existência de um único estilo Desclaux. Porém, a escritora francesa Mylène Desclaux nos mostrou dois estilos muito diferentes de escrita nos dois livros que publicou até o momento.   

     

    O livro que traduzi para a editora Haryon, As jovens mulheres de 50 anos, foi a transposição de seu blog Happy Q - le blog des jeunes femmes de 50 ans. O texto é informal, divertido, pontuado por trocadilhos e é também muito heterogêneo na forma e no conteúdo, pois aborda assuntos leves e profundos, engraçados e tristes, dirigindo-se a seus leitores (e particularmente a suas leitoras) como se estivessem numa conversa familiar e, em alguns trechos, íntima. Já o seu segundo livro, Gala et moi, publicado em junho deste ano, é um romance cheio de ternura, escrito com muita reflexão e delicadeza.   

     

    E foi justamente esse tom de conversa informal de As jovens mulheres de 50 anos que me deu muito pano pra manga. Em primeiro lugar, como mencionei acima, pelos muitos trocadilhos, ditados e expressões idiomáticas que não tinham equivalentes em português. Tive que ser criativa para traduzir o sentido respeitando a forma. Mas, acima de tudo, por esse livro, mais do que qualquer livro acadêmico que traduzi, ter me obrigado a tomar decisões não muito óbvias no que diz respeito às referências culturais que a autora relaciona aos diferentes momentos das nossas vidas.   

     

    Também traduzido para o inglês, entendi, pelo título dado pela editora americana, que a escolha editorial baseou-se numa abordagem cultural do texto, destacando a nacionalidade da autora e, provavelmente, as características específicas da cinquentona francesa. Não li a versão inglesa do livro, mas é isso que o título Why French Women Feel Young at 50 sugere.   

     

    No Brasil, optamos por uma abordagem diferente: não nos baseamos no que nos diferencia, mas, ao contrário, no que nos une como mulheres, nas nossas similaridades, sem apagar, é claro, as particularidades do contexto sociocultural da escritora. Apostamos na identificação das leitoras brasileiras com os argumentos colocados pela autora. E isso incluía a porção nostálgica, a evocação da memória, principalmente quando a escritora rememorava sua juventude pelos hits musicais de então. E para que as leitoras brasileiras pudessem se transportar de volta à sua juventude com a mesma intensidade que a autora, adaptamos algumas referências ao nosso universo cultural, pois aquelas citadas pela autora não tinham apelo afetivo ou qualquer significado emocional no Brasil (deixando as originais no pé de página).  São apenas duas frases do livro, mas que me impediram de dormir diversas noites. 

     

    Optamos por essa abordagem por que, no Brasil, mais que em muitos outros países, a música desempenha um papel central na vida pessoal das mulheres brasileiras. Nossos artistas compuseram a trilha sonora das nossas histórias de amor, de eventos importantes, de momentos únicos que deixam marcas indeléveis. Quando ouço Meu erro do Paralamas do sucesso, posso sentir, nas minhas entranhas, a alegria das noites festivas do verão carioca com meus amigos surfistas com os quais escrevi um capítulo maravilho da minha própria novela.     

     

    Estas escolhas não são anódinas e são sujeitas a críticas. Mas tenho a certeza de que contribuirão para que as leitoras brasileiras percebam que, para além das (muitas) diferenças socioculturais que separam uma paraense ribeirinha de uma parisiense do 16° arrondissement de Paris, todas nós vivenciamos momentos de profunda alegria e  tristeza, reconhecemo-nos na melancolia trazida pelo ninho vazio, assustamo-nos com as mudanças físicas observadas em nosso corpo no decorrer de nossas vidas e tememos o envelhecer. Em suma, para que descubramos, juntas, a força e a  fragilidade da humanidade que nos aproxima.   

    As jovens mulheres de 50 anos, lançamento em breve no Brasil pela editora Haryon.

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  • O tradutor e o "seu" autorNão sei se todo mundo pensa assim, mas acho que nunca se deixa de amar alguém que se amou um dia. Amigos, namorados, professores… mesmo que a forma de amor mude com o tempo, aqueles que amamos profundamente de uma forma ou de outra serão sempre especiais aos nossos olhos. Não creio que seja possível olhar para um ex-namorado sem que venham à nossa mente lembranças de momentos partilhados; olhar para uma amiga de infância sem pensar nas travessuras feitas juntas, compartindo sonhos de um futuro idealizado. Hoje, como consequência de minhas escolhas pessoais, minhas relações amigáveis são majoritariamente virtuais, mas estas pessoas habitam em mim, fazem parte de quem eu sou, cada uma delas acrescentou um pouco ao adulto no qual me tornei.

    E penso que tem um pouco disso na relação que estabeleço com os autores que traduzi. Não sei se meus colegas tradutores partilham este mesmo sentimento, mas instauro uma relação particular com os "meus" autores. Tenho a sorte de ter traduzido autores que admiro (pergunto-me como deve ter sido para o excelente tradutor Olivier Mannoni ao traduzir Mein Kampf). É uma relação meio estranha que eu nunca teria aceitado na minha vida amorosa, pois é unilateral, desproporcional e não correspondida. Totalmente platônica. Afinal, a maioria não tem a menor ideia de quem eu seja, muitos até já não estão mais neste mundo, e os que ainda estão por aqui, pertencem a uma outra dimensão social.  

    Acho inevitável que seja assim, pois passei meses com cada um deles, tentando alegremente me introduzir no que eles têm de mais íntimo, ou seja, sua consciência, seu pensamento, seu espirito, para captar o que queriam dizer e respeitar sua intenção. Durante semanas, estes autores me habitaram, trazendo também apreensões que me despertaram muitas vezes assustada no meio da noite pelo medo de ter me enganado sobre o sentido de uma frase ou de uma expressão, de lhes ter sido infiel, em suma. Se a infidelidade é uma noção sujeita a diversas interpretações quando se trata de uma relação amorosa e adaptável ao que cada casal deseja para si (nos países realmente democráticos), aqui ela é inequívoca, pois na minha forma de exercer a tradução literária, tento reproduzir o intuito, as entonações, o raciocínio e o estado de espirito do autor com palavras que muitas vezes não têm equivalente em português.

    No ano passado, o ilustre historiador francês Paul Veyne faleceu. Passei quase um ano com ele tentando entender as complexidades do evergetismo helenístico através de sua argumentação fina e sofisticada, apresentada em seu clássico "Pão e Circo - Sociologia histórica de um pluralismo político". Ele me guiou pelos meandros dos aspectos irracionais da política na antiguidade, como se estivesse falando comigo. Aqueles meses com ele foram intensos e estimulantes, durante os quais aprendi muito sobre um assunto fascinante sobre o qual eu não sabia nada. Quando soube de sua morte, fiquei triste, como quando se perde um tio distante, porém querido.

    Recentemente ousei entrar em contato para me apresentar a uma autora cujo livro traduzi ano passado, dizendo-lhe: “Você não tem a menor ideia de quem eu sou, mas eu passei os últimos quatro meses tentando entrar na sua cabeça”. Não sei o que ela sentiu ao ler esta frase, provavelmente me achou meio louca, em todo caso foi extremamente carinhosa comigo. Ao ponto de ter comprado e lido o meu livro autobiográfico, o que me deixou lisonjeada. O livro dela será lançado em muito breve no Brasil e o recomendo fortemente. As leitoras brasileiras poderão então não somente se deliciar com as aventuras parisienses da Mylène Desclaux em “As jovens mulheres de cinquenta anos”, mas também entender perfeitamente o que digo neste post, pois a autora usa muitas expressões tipicamente francesas num livro cheio de histórias picantes sob as quais o duplo sentido é onipresente. 

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  • Crescer sem mãeDomingo passado foi dia das mães no Brasil. As redes sociais estampavam dezenas de mensagens sobre o amor de mãe, pipocavam declarações afetuosas de filhos e filhas para suas mães, aqueles que ainda as têm e podem dizê-lo, e os que já não as têm e expressam a dor da ausência. Tento manter-me estoica diante disso, mas é sempre inevitável pensar na minha.

    Faz quarenta e cinco anos que ela deixou de existir, pelo menos na face visível da terra (já que ninguém sabe para onde vamos depois da morte e, como boa agnóstica que sou, acredito em tudo e em nada, até que me provem o contrário). Sei que perder a mãe faz parte do ciclo da vida, mas é sempre uma dor dilacerante, em qualquer idade. Aos quatorze anos, é cedo demais. Não posso falar do que acontece com as pessoas que as perdem em outras idades, mas na adolescência, o estrago é profundo e duradouro. Senti-me como um projeto inacabado, um rascunho que não teve tempo de ser passado a limpo, um esboço de gente. Eu era o próprio Edward com suas mãos de tesoura.

    Foi quando tornei-me mãe que me dei conta da profundidade do que a vida me privou (a mim e às minhas irmãs). Ela me negou um amor imenso que não cabe na gente, incondicional e puro. Ela arrancou de mim o que eu tinha de mais precioso naquele momento, meu pilar, meu referencial, meu chão, a continuidade de quem eu era e os pontos que estavam faltando para eu me tornar um adulto soberano. O adulto no qual eu me tornei tem um defeito de fabricação irreparável.

    Não me lembro mais do momento em que entendi que ninguém viria consertar os danos, colar os cacos quebrados e que caberia a mim retificar o tiro. Fui então levando a minha vida sem estrela-guia, com minhas mãos de tesoura, desajeitada e desesperada, ferindo-me e machucando a mim e aos outros mais do que devia. Aos trancos e barrancos, fui progressivamente construindo um sistema de valores próprio, sem contexto e sem limites impostos, mas sempre com o desejo de estudar, aprender e tornar-me independente transmitido por minha mãe durante aqueles parcos quatorze anos. Afinal, o protótipo de adulto iniciado por ela tinha um estêncil sólido e marcou-me a ferro quente.

    Hoje posso dizer que depois de domar o furacão que se abateu sobre mim na adolescência, mantive-me fiel a seus ensinamentos e ao seu mantra de sempre colocar-me no lugar dos outros. Errei muito, mas passados quarenta e tantos anos, acho que estou começando a acertar, embora permaneça viva e latente a vontade louca e insaciável de um colo.

     

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  • O ninho vazioAqueles que me conhecem sabem que passei da infância à idade adulta sem transição. Não tinha nem vinte anos quando comecei a trabalhar para pagar meu aluguel, meus estudos, alimentar-me e vestir-me. As circunstâncias particulares do início da minha vida fizeram de mim uma pessoa independente e livre, isenta de referências sociofamiliares. Meu feminismo surgiu neste ímpeto, espontaneamente, da necessidade de me proteger e me impor diante de uma sociedade hierárquica, patriarcal e machista como a brasileira. Ele manifestou-se na prática antes de se inscrever na teoria. E até hoje, concebo o feminismo como o respeito inerente a qualquer indivíduo e não como uma busca de igualdade entre homens e mulheres. Reivindico direitos iguais apesar das diferenças. Porque estas diferenças existem. E foi na maternidade que o meu feminismo sofreu alguns danos.

    Não creio que a maternidade (em sua percepção atual) e o feminismo sejam incompatíveis, o “mito da mãe admirável”, denunciado por Élisabeth Badinter, felizmente parece já ter sido desconstruído como visão dominante. Mas acredito que, apesar das vozes discordantes, a dependência financeira possa ser um fator de incompatibilidade ou, na melhor das hipóteses, desequilibrar posicionamentos que deveriam ter o mesmo peso quando um depende do outro num relacionamento a dois. E foi justamente a biologia feminina manifesta numa placenta prévia que me obrigou a ficar deitada durante os seis últimos meses da minha gravidez e me levou a um período de dependência econômica. Adeus emprego, colegas, almoços no centro da cidade, um trabalho do qual gostava e a prática de esporte pelos próximos anos, que seriam marcados pela dedicação total e exclusiva ao meu filho: morávamos longe de nossas respectivas famílias e não havia disponibilidade na creche da cidade. 

    O que dizer, então, dos quesitos psicológicos e emocionais? Como conciliar uma independência emocional conquistada a duras penas e o aprendizado necessário para domar esse sentimento estranho que nos invade como um tsunami com a chegada deste novo ser: o ser mãe? Entre a imagem de uma maternidade água-com-açúcar idealizada onde tudo é divino e maravilhoso e aquela que ressalta as dificuldades reais encontradas para equilibrar diversas identidades que se misturam, o exercício é complexo e muitas vezes a gente se perde no caminho.

    O primeiro exercício consiste em entender e aceitar que um serzinho indefeso depende totalmente de você para viver, que se alimenta através do seu corpo nos primeiros meses e que nos próximos quinze anos todos os seus atos mais anódinos terão um impacto direto ou indireto sobre ele. Seu cotidiano vai se construindo marcado pelas diferentes fases da vida deste ser que precisa e quer você por perto até que, um belo dia, essa rotina já bem rodada, envolta no cheiro de biscoito saindo do forno, para sem aviso prévio: o quarto fica vazio, a sala arrumada demais e a cozinha muito limpa. O silêncio é ensurdecedor. Nosso novo papel consiste, agora, em desaprender, de um dia para o outro, o que se levou tempo para construir e aceitar uma mudança no estatuto de indispensável para o de inconveniente. Para mim, este processo está sendo longo e doloroso.

    Porém, não vejo, à minha volta, muitas mulheres perceberem-no assim, e a literatura que encontrei a este respeito não é extensa. Seria eu a única a vivenciá-lo desta forma? Comecei a me perguntar se o fato de assumir que se sofre pelo ninho vazio seria revelador de um certo esmorecimento de um feminismo reivindicado. Se seria antinômico com a plenitude individual feminina. Se seria incongruente com uma vida profissional satisfatória. Se seria, enfim, admitir vulnerabilidades. Seria este um tema tabu? 

    Há alguns anos, a cantora Madonna disse que a gravidez era uma grande piada de Deus com as mulheres. Eu diria que, muito mais que a gravidez, o que representa um grande paradoxo para as mulheres que, por escolha ou não, tornaram-se mães, consiste em ter que se esforçar para se distanciar voluntariamente de alguém que se queria ter por perto e ter que aprender a viver um cotidiano sem esse amor puro e profundo.

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  • O relativismo históricoNum artigo da revista francesa L'Obs, a jornalista Véronique Radier comenta o mais recente livro do historiador e antropólogo Emmanuel Todd intitulado "Où en sont-elles ? Une esquisse de l'histoire des femmes" (Onde elas se encontram? Um esboço da história das mulheres). De acordo com este artigo, Todd considera que as mulheres colocaram-se injustamente contra os homens e estariam constituindo um regime de "matridominação", o qual representaria um grande perigo, pois põe em risco as estruturas fundamentais do pensamento humano. 

    O que ele parece não admitir, é que essa estrutura fundamental do pensamento humano tem sido dominada por diferentes formas de androcentrismo, ou seja, o referencial deste pensamento é o ponto de vista masculino.

    Os avanços na obtenção de uma maior igualdade de direitos entre homens e mulheres são indubitavelmente significativos no ocidente como um todo. Numa perspectiva de médio prazo, atos e comportamentos que atualmente são banais, foram, outrora, proibidos às mulheres, como o voto, ter uma conta bancária, fazer longos estudos e muitas outras conquistas que integram, hoje, a visão do mundo das novas gerações. Porém, o combate mais árduo reside no androcentrismo inconsciente que se esconde por trás de comportamentos que mesmo os homens mais engajados a favor das mulheres parecem não perceber. 

    Há alguns anos, traduzi o livro "O gênero nas ciências sociais", uma coletânea de textos de releitura dos grandes clássicos, na qual pesquisadores contemporâneos esmiúçam textos fundadores das ciências sociais francesas para observar e eventualmente identificar diversas formas de androcentrismo, muitas vezes inconscientes. Textos de Max Weber, Alain Touraine, Bruno Latour, Michel Crozier, Pierre Bourdier, entre outros grandes nomes foram dissecados. A ideia consistia em apontar as derivas de um machismo que, segundo as coordenadoras da pesquisa, impregnava a sociedade e o discurso de uma época, na qual "o homem, identificado ao geral, era sempre a referência".

    Assim, quando Lévi-Strauss afirma em seu estudo sobre os Bororo de 1936 que "o vilarejo inteiro foi embora no dia seguinte em umas trinta pirogas, deixando-nos sozinhos com as mulheres e as crianças em casas abandonadas", Martine Gestin e Nicole-Claude Mathieu observam que este enunciado é totalmente centrado no gênero masculino - já que o vilarejo inteiro excluía as mulheres e as crianças, revelador de um androcentrismo ligado a todas as formas de organização social, nas quais as mulheres seriam "o segundo sexo". 

    Outros exemplos ilustram este livro que, confesso, desmitificou, aos meus olhos, muitos de meus mestres. Mas, acima de tudo, ele veio mostrar o quanto, apesar de todos nossos esforços de objetividade (a palavra de ordem nos estudos de antropologia), nossos preconceitos influenciam nossas análises e são suscetíveis de falsear estudos essenciais.

    Um exemplo recente vem da paleoantropologia. Durante anos, resumia-se o papel das mulheres pré-históricas ao âmbito doméstico e à colheita, enquanto aos homens eram atribuídas as corajosas funções de caçar grandes mamíferos, fabricar ferramentas de caça, armas de guerra e habitações. Essa divisão sexista das funções engendrou erros de interpretação de vestígios pré-históricos: até recentemente, decretava-se que um esqueleto era masculino pela simples presença de armas e ferramentas encontradas próximas ao restos mortais. Graças à aplicação do sequenciamento de ADN e de tecnologias modernas de datação, descobriu-se que, de fato, muitos destes esqueletos eram femininos, conduzindo a interpretações totalmente diferentes das que eram feitas até então. A pré-historiadora Marylène Patou-Mathis, especialista do comportamento neandertal, vem romper o antigo paradigma interpretativo e conta em seu livro "L'homme préhistorique est aussi une femme" (O homem pré-histórico é também uma mulher), que as mulheres também caçavam grandes mamíferos, fabricavam ferramentas e construíam habitações. 

    Ora, a implosão desse modelo interpretativo tem consequências que vão muito além da simples ideia que se fazia da vida na pré-história. Ela quebra também teorias muito atuais construídas com base nessa inverdade, dentre as quais a "lei universal" estabelecida pelo próprio Emmanuel Todd, segundo a qual os homens teriam o monopólio do coletivo e as mulheres uma visão que se limitava ao âmbito familiar, fundada no fato de que "as mulheres nunca caçaram" (o produto da caça seria partilhado com o grupo, enquanto o produto das colheitas seria restrito ao círculo familiar).

    Enquanto aguardamos a reavaliação da teoria de Emmanuel Todd sobre os riscos da matridominação com base nessas recentes descobertas, fica a lição de que não é somente o relativismo cultural que pode nos tirar deste emaranhado de preconceitos socialmente construídos nos quais estamos todos presos, mas o relativismo histórico também exerce um papel essencial.  

    L'Obs - édition 2987, 20 de janeiro.

    L'homme préhistorique est aussi une femme - Une histoire de l'invisibilité des femmes. Marylène Patou-Mathis, Allary Éditions, 2020.

    Où en sont-elles ? Une esquisse de l'histoire des femmes, Seuil, 2022.

     

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  • Qual é a cor do tradutor?A profissão de tradutor apresenta algumas desvantagens bem conhecidas como o isolamento social, uma competitividade crescente e uma certa volatilidade nas relações profissionais. Até agora, sempre disse a mim mesma que essas desvantagens eram compensadas por uma grande vantagem: nossa aparência física não importa. Nosso orçamento para roupas de trabalho é zero, maquiagens e cabelereiros tornaram-se totalmente supérfluos, enfim, não estamos sujeitos à ditadura do "look" como noutras profissões. Melhor ainda, as crises existenciais ligadas à idade devido a um universo profissional no qual uma pessoa de cinquenta anos é substituída por três novatos não nos afetam da mesma forma, pelo contrário, é uma profissão onde se busca experiência. Mas será que isso está se tornando história antiga?

    Há algumas semanas publiquei um post chamado Eu, branca denunciando certas formas sutis de racismo contra os negros no qual eu - ingenuamente, candidamente, estupidamente - defendia uma sociedade mais justa e igualitária. Meu anti-racismo diz respeito a todas as formas de racismo e discriminação. E aquelas que estão atingindo nossa profissão me parecem igualmente incongruentes.

    Dois artigos do jornal Le Monde publicados há poucos dias contam como a tradutora holandesa Marieke Lucas Rijneveld desistiu de traduzir o livro The Hill We Climb, de Amanda Gorman, uma jovem poetisa americana, por ter sofrido muita pressão devido ao fato de ser ... branca. Mas ela não foi a única, um caso semelhante ocorreu na Espanha, onde o tradutor Victor Obiols foi excluído deste mesmo projeto pelos mesmos motivos. O argumento levantado consistia em dizer que, como brancos, eles não podiam se colocar no lugar de uma mulher negra.

    A problemática desta escolha de um tradutor em um catálogo em preto e branco situa-se além do racismo primário: ela questiona a própria essência do trabalho do tradutor e também a do escritor. Será então que vão começar a questionar a personagem de Madame Bovary porque Flaubert era um homem e não conseguia entender os sentimentos de uma mulher? É o próprio Victor Obiols quem melhor nos fala sobre isso: "Se eu não posso traduzir um poetisa porque ela é uma mulher, jovem, negra, americana do século XX, então também não posso traduzir Homero, porque não sou um grego do século VII aC ou não poderia ter traduzido Shakespeare, porque não sou um inglês do século XV ”.

    Esse estranho comportamento ultrapassa o escopo de nossa profissão, todo mundo sabe disso. Mas alguns fatos parecem mais aberrantes do que outros. De acordo com matéria publicada no L'Obs retransmitida pelo Le Figaro e confirmada pela própria autora esta semana na Europa 1, a presidente da União Nacional dos Estudantes da França, Mélanie Luce, organiza reuniões de trabalho às quais é vetada a participação de brancos. Atitude inadmissível para um sindicato que visa "defender os interesses materiais e morais dos estudantes através de missões de informação, defesa e organização de solidariedade [...] no combate à discriminação".

    A missão Perseverance pousou recentemente no planeta Marte. Porém, fico me perguntando se existe vida inteligente no planeta Terra porque, definitivamente, o ser humano não sabe aprender nenhuma lição das tragédias advindas em nossa história.

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  • Loucuras maternas de uma órfãPerder nossos pais está na ordem natural das coisas, faz parte do ciclo da vida. Mas não na infância nem na adolescência. Somente os que viveram sem o amor incondicional de uma mãe podem sequer imaginar o que isso representa. Aquele espaço vazio está ali permanentemente nos lembrando do carinho que não recebemos, do acalanto que não tivemos, das vezes em que precisamos de colo e não encontramos onde encostar nossos ombros cansados do peso de uma vida que começou cruel. Uma vida vivida com o fardo da perda.

    As sociedades não deviam ser divididas em categorias sociais, profissionais ou raciais, mas entre pessoas que cresceram com ou sem mãe. Às pessoas que cresceram sem mãe seria dado o direito de só terem professores gentis, chefes simpáticos, amigos sinceros. Medidas que compensassem um pouco esse desequilíbrio. Defendo com unhas e dentes os direitos dos deficientes físicos, mas reivindico aqui o direito dos deficientes emocionais.

    Passados mais de quarenta anos daquele dia desalmado, percebo hoje, enfim serena, que vivi uma vida by defaut, uma vida alternativa, defeituosa. Vivi uma vida querendo outra. Não uma vida com mais dinheiro, mais bonita ou mais inteligente, mas uma vida com mãe. 

    Pude medir o tamanho do estrago quando me tornei mãe. Sempre tomei muito cuidado para que minhas carências não transbordassem no meu filho, embora fosse inevitável que derramasse um pouquinho. Acho até que me saí bem, mas é na minha própria loucura que o estrago se manifesta: ela surge na inevitabilidade de pensar constante e cansativamente na dor que meu filho sentirá quando eu não estiver mais aqui. Seria eu a única a pensar assim? Será que tem cura, doutor? Pois apesar de eu brigar comigo mesma para tirar esses nefastos pensamentos da minha cabeça, eles voltam como bumerangue. 

    Porque esse dia fatalmente virá. 

    Quando o cheiro de pipoca na fila do cinema o lembrará das tardes chuvosas em que assistíamos a Fast and Furious agarradinhos. Talvez ele se lembre das manhãs preguiçosas em que eu ia acordá-lo chamando-o de "meu bebê" e que ele me expulsava, irritado, afirmando sua autonomia. Talvez se lembre das fantasias malfeitas que eu fazia para as festas da escola, rindo da minha própria incompetência manual. Ou talvez não se lembre de nada disso. Mas tenho a absoluta certeza de que o amor profundo com o qual o criei deixará marcas indeléveis, pois foi esse mesmo amor que recebi durante parcos quatorze anos que me preencheu, mantendo-me em pé nesse mundo cão.

     

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  • Eu, brancaNunca contei o ocorrido a minha amiga e nem ousei falar disso por falta de provas, mas pude confirmar minhas suspeitas recentemente. Ela vai descobrir se ler esse post.

    Há alguns anos inaugurou um café na minha cidade do tipo que eu gosto, com sofás e capuccinos, cosy e acolhedor. Comecei a frequentá-lo e sempre fui recebida com um largo sorriso. Num dos meus aniversários, minha amiga me sugeriu tomarmos um café-da-manhã juntas, e sugeri esse lugar. Cheguei um pouco antes, fui recebida como de hábito, sentei-me e esperei por ela. Ela chegou, sentou-se, mas quando vieram nos atender, a acolhida foi glacial, extremamente desagradável. Senti-me desconfortável e mal consegui engolir meu café da manhã, mas minha amiga nem percebeu. Olhei para as outras mesas e o atendimento estava sorridente como sempre. Perguntei-me porque estávamos sendo tratadas daquele jeito, tentando encontrar o detalhe que fazia a diferença na nossa mesa. O único diferencial que demorei a admitir era a cor da pele da minha amiga. 

    Minhas suspeitas foram confirmadas recentemente ao ler um artigo no Trip Advisor sobre esse café. No meio de muitos comentários elogiosos, um foi extremamente crítico quanto à acolhida, contada nos detalhes, e concluindo que havia ficado claro, para ela, que foi recebida diferentemente dos outros por ser negra. 

    Se eu demorei a aceitar que aquele atendimento execrável devia-se ao fato de minha amiga ser negra, não foi pela ingenuidade de achar que o racismo não existe, muito pelo contrário. Afinal, nasci no Rio de Janeiro, fui testemunha do racismo escancarado, violento e cruel durante todos os vinte e cinco anos vividos ali, mas queria ter provas para não acusar injustamente alguém de um comportamento tão vil. Ao mesmo tempo, observar tão abertamente esse racismo sutil e pernicioso me fez cogitar. Principalmente pelo fato de a minha amiga sequer ter percebido aquela frieza e rispidez no modo como fomos tratadas: não fez nenhum comentário e achou tudo normal. Eu disse para mim mesma que isso se deve provavelmente ao fato de tal tratamento não ser tão incomum para ela, que se manteve meiga e sorridente o tempo todo. Pensei também, com muita tristeza, que além da violência aberta e desumana da qual os negros têm sido vítimas há séculos, além da discriminação no trabalho, policial e da estigmatização social, eles vivem num mundo hostil. Eu, branca, não volto em lugares onde me tratam assim. Mas que escolha eles teriam? Seria esse o tratamento ao qual são confrontados? Nunca saberei exatamente.

    A socióloga americana Robin Diangelo lançou um livro intitulado "Fragilidade branca" no qual aborda a dificuldade que os brancos têm de se apresentarem através de uma descrição racializada, como brancos. Segundo ela, essa dificuldade vem de longe, ela seria o fruto do modo como a história é narrada em nossas sociedades ocidentais : "a história branca é a que serve de norma à História. Assim, o fato de precisarmos especificar que estamos falando da história dos negros ou das mulheres, sugere que eles se situam fora da norma". Em outras palavras, a identidade branca consiste em se considerar com um indivíduo isento de raça. A "fragilidade branca" não seria, então, uma fraqueza em si, mas, ao contrário, um meio poderoso de controle racial e de proteção das vantagens dos brancos. A recusa de se pensar como brancos seria, segunda essa autora, um meio de perpetuar uma sociedade que mantém uma desigualdade de fato, pois a branquitude seria associada à neutralidade ou à universalidade.

    Essa autora não sugere que os bracos, individualmente, não encontrem obstáculos ou combates contra os quais precisa lutar, ela afirma simplesmente que o racismo não é um deles. E conclui dizendo que o primeiro passo para uma mudança na luta antirracista seria que os brancos se reconhecessem como brancos, integrantes de um sistema que funciona racialmente, e admitissem os privilégios associados a essa característica. Foi o que pretendi ao redigir esse post

    Livro: White Fragility: Why it's so hard for white people to talk about racism. Robin DiAngelo, Paperback, 2018. 

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  • Os invisíveis essenciaisQuando eu era ainda uma criança, a ingenuidade do meu pensamento acreditava que lixeiros e profissionais que exercem trabalhos similares, difíceis ou ingratos, tinham um excelente salário. Eu estava convencida de que a sociedade, em sua justiça altiva, pagava bem àqueles que exerciam funções e profissões que poucas pessoas gostariam de exercer, como uma forma de compensação e reconhecimento. Qual não foi minha surpresa ao descobrir a dura realidade das péssimas condições de trabalho dessas profissões tão essenciais para o bom funcionamento de qualquer sociedade moderna, principalmente no Brasil, país onde nasci e vivi meus primeiros vinte e cinco anos de vida. 

    Foi um verdadeiro choque! Não me lembro a idade que tinha quando comecei a perceber o quanto tais profissões eram não somente mal pagas, mas extremamente social e simbolicamente desvalorizadas quando deviam receber todo nosso respeito e gratidão. Muitos passam sem sequer ver os que Ken Loach chama de "invisíveis" em seu pungente filme "Bread and Roses" que mostra a forma como tais profissionais são tratados nos Estados Unidos. Essa foi provavelmente minha primeira incompreensão e revolta social, que se acumulará a muitas outras no decorrer da minha vida. 

    Acho que até pouco tempo atrás eu ainda tinha uma crença profunda na humanidade, genuinamente acreditando que o objetivo de todos seria caminharmos para sociedades mais igualitárias, solidárias, menos injustas. Ledo engano! O mundo está ficando ainda mais incompreensível para mim, onde uma Kim Kardashian é um modelo de sucesso e se enriquece cada dia mais, enquanto aqueles que exercem profissões vitais e imprescindíveis lutam para manter um emprego cujo salário mal paga suas contas.

    Nesse ano de 2020, estamos vivenciando uma crise sem precedentes na idade moderna provocada pela pandemia do Covid-19. Num curto artigo sobre as lições a serem tiradas desse confinamento em escala mundial, a socióloga franco-israelense Eva Illouz afirma que nós devemos nossa sobrevivência aos homens e mulheres que trabalham nos supermercados, hospitais, limpando as ruas, aos entregadores e à todos aqueles que exercem profissões essenciais, e que esse evento mostrou "a vacuidade de celebridades e financistas enquanto os que ocupam atividades habitualmente invisíveis e desvalorizadas revelaram-se ser nossos pilares". Ela termina dizendo que nosso mundo "normal" funciona com uma escala de valores falsa e invertida. 

    Foi preciso, então, uma catástrofe sanitária mundial para que meu pensamento infantil encontrasse um respaldo concreto. Encontrei, enfim, alguém que pensa como a menina que eu era. A diferença entre mim e Eva Illouz reside no fato de que eu, definitivamente, não acredito que a humanidade tirará qualquer lição daquilo que, como diria o grande Caetano Veloso, "nesse momento se revelará aos povos e surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio". 

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  • As pequenas mortes da vidaEmbora a palavra luto em português também defina um sofrimento ou desgosto, ela é comumente associada à perda física de alguém. Aqui na França, seu equivalente em francês, deuil, tem uma utilização mais ampla, esse termo é frequentemente usado para se referir ao que deve ser deixado para trás. Na minha compreensão da expressão "faire le deuil", revela-se a sábia ideia de aceitar o que não pode ser mudado.

    Nossas vidas estão repletas de momentos assim, que foram maravilhosos e nos quais estávamos (ou pensávamos ser) felizes, mas que por razões independentes da nossa vontade não existem mais. Não temos outra escolha senão aceitar que permanecerão no passado e seguir em frente. Pois apesar dessa ruptura não ser dramática ou tão dolorosa quanto à irremediável perda física de alguém, as lembranças desses momentos, pessoas e lugares que somos obrigados a deixar para trás podem nos machucar - e muito.

    Esse sentimento se impôs a mim recentemente quando me deparei com a foto do meu filho pequeno. Olhei para aquele bebê e senti saudades dele, sentimento estranho, pois meu filho estava ali, ao meu lado, em carne e osso. Teoricamente esse adolescente de hoje é o mesmo menininho de dez anos atrás. Mas na prática não é: o relacionamento, o lugar que ocupo na vida dele, a visão que ele tem de mim, não são absolutamente os mesmos. Tenho que fazer o luto daquele momento da minha vida de mãe e de tudo o que aquele período representava. Meu papel agora é olhar para a frente, dando-lhe autonomia e independência para que meu filho voe com as próprias asas. É o grande paradoxo da maternidade: quanto melhor se cria um filho, mais alto ele voa e muitas vezes para bem longe de nós. 

    Fiquei tentando entender porque é tão doloroso. Afinal, assim é a vida, todos crescemos, evoluímos e não somos os mesmos de dez anos ou mesmo um ano atrás. Por que então pensar em meu bebê me traz uma doce amargura? A resposta finalmente é simples e profunda: por que somos obrigadas a desatar um nó bem amarrado, sair desses parênteses encantados no qual o apego à nossa cria, que nos invade selvagemente e libera nossos instintos animais, nos colocou. Esses mesmos instintos que lutamos para dominar durante toda nossa vida social, principalmente nos papeis que revestimos como mulheres, podadas por exigências e regras morais muito mais estritas que as dos homens. Com a maternidade reconstruímos uma identidade dominada por um amor profundo, bestial, dessa vez totalmente autorizado e até mesmo legitimado pela sociedade (contrariamente a outras formas de amor), sem as barreiras que fomos obrigadas a construir. Nesse espaço suspenso e provisório um serzinho indefeso e totalmente vulnerável depende de nós. Devemos protegê-lo e defendê-lo contra os numerosos males da vida. É muito fácil se acostumar com essa liberação afetiva que toca nosso âmago e desperta emoções até então insuspeitadas, sem autocensura, aprendendo a lidar com a ideia de uma constante solicitação e da necessidade que esse serzinho tem da nossa presença. É um período da nossa vida em que nos sentimos valorizadas e amadas como nunca antes, nosso papel ali é central, essencial e até mesmo vital. Nesse curto espaço de tempo tornamo-nos, enfim,  importantes para alguém, nosso ego é alimentado cotidianamente nessa relação que implica resignação e doação, mas cujo retorno é imediato porque nos é devolvido envoltos de uma rara pureza. 

    E tudo isso se desmorona repentinamente, como chegou. Na adolescência toda essa devoção tão simples de construir, com nossas tripas, deve ser racionalmente desconstruída. Nosso papel agora consiste no extremo oposto do que vinhamos fazendo até então, devemos nos tornar desnecessárias, ensiná-los a se virar sozinhos, dizer-lhes que não devem mais depender de nós e mostrar-lhes que são capazes disso. Instala-se uma luta feroz entre a vontade louca de tê-los sempre por perto, eternamente agarradinhos como naqueles primeiros anos mergulhados num afeto genuíno, fora desse mundo-cão, e a imprescindibilidade de torná-los independentes... e livres. Eis aqui a resignação suprema: ajudá-los a deixar o ninho e observá-los entrar num mundo hostil andando pela rua escura e levando com eles um pedaço da nossa alma.

     

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