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Loucuras maternas de uma órfã
Perder nossos pais está na ordem natural das coisas, faz parte do ciclo da vida. Mas não na infância nem na adolescência. Somente os que viveram sem o amor incondicional de uma mãe podem sequer imaginar o que isso representa. Aquele espaço vazio está ali permanentemente nos lembrando do carinho que não recebemos, do acalanto que não tivemos, das vezes em que precisamos de colo e não encontramos onde encostar nossos ombros cansados do peso de uma vida que começou cruel. Uma vida vivida com o fardo da perda.
As sociedades não deviam ser divididas em categorias sociais, profissionais ou raciais, mas entre pessoas que cresceram com ou sem mãe. Às pessoas que cresceram sem mãe seria dado o direito de só terem professores gentis, chefes simpáticos, amigos sinceros. Medidas que compensassem um pouco esse desequilíbrio. Defendo com unhas e dentes os direitos dos deficientes físicos, mas reivindico aqui o direito dos deficientes emocionais.
Passados mais de quarenta anos daquele dia desalmado, percebo hoje, enfim serena, que vivi uma vida by defaut, uma vida alternativa, defeituosa. Vivi uma vida querendo outra. Não uma vida com mais dinheiro, mais bonita ou mais inteligente, mas uma vida com mãe.
Pude medir o tamanho do estrago quando me tornei mãe. Sempre tomei muito cuidado para que minhas carências não transbordassem no meu filho, embora fosse inevitável que derramasse um pouquinho. Acho até que me saí bem, mas é na minha própria loucura que o estrago se manifesta: ela surge na inevitabilidade de pensar constante e cansativamente na dor que meu filho sentirá quando eu não estiver mais aqui. Seria eu a única a pensar assim? Será que tem cura, doutor? Pois apesar de eu brigar comigo mesma para tirar esses nefastos pensamentos da minha cabeça, eles voltam como bumerangue.
Porque esse dia fatalmente virá.
Quando o cheiro de pipoca na fila do cinema o lembrará das tardes chuvosas em que assistíamos a Fast and Furious agarradinhos. Talvez ele se lembre das manhãs preguiçosas em que eu ia acordá-lo chamando-o de "meu bebê" e que ele me expulsava, irritado, afirmando sua autonomia. Talvez se lembre das fantasias malfeitas que eu fazia para as festas da escola, rindo da minha própria incompetência manual. Ou talvez não se lembre de nada disso. Mas tenho a absoluta certeza de que o amor profundo com o qual o criei deixará marcas indeléveis, pois foi esse mesmo amor que recebi durante parcos quatorze anos que me preencheu, mantendo-me em pé nesse mundo cão.
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