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Os invisíveis essenciais
Quando eu era ainda uma criança, a ingenuidade do meu pensamento acreditava que lixeiros e profissionais que exercem trabalhos similares, difíceis ou ingratos, tinham um excelente salário. Eu estava convencida de que a sociedade, em sua justiça altiva, pagava bem àqueles que exerciam funções e profissões que poucas pessoas gostariam de exercer, como uma forma de compensação e reconhecimento. Qual não foi minha surpresa ao descobrir a dura realidade das péssimas condições de trabalho dessas profissões tão essenciais para o bom funcionamento de qualquer sociedade moderna, principalmente no Brasil, país onde nasci e vivi meus primeiros vinte e cinco anos de vida.
Foi um verdadeiro choque! Não me lembro a idade que tinha quando comecei a perceber o quanto tais profissões eram não somente mal pagas, mas extremamente social e simbolicamente desvalorizadas quando deviam receber todo nosso respeito e gratidão. Muitos passam sem sequer ver os que Ken Loach chama de "invisíveis" em seu pungente filme "Bread and Roses" que mostra a forma como tais profissionais são tratados nos Estados Unidos. Essa foi provavelmente minha primeira incompreensão e revolta social, que se acumulará a muitas outras no decorrer da minha vida.
Acho que até pouco tempo atrás eu ainda tinha uma crença profunda na humanidade, genuinamente acreditando que o objetivo de todos seria caminharmos para sociedades mais igualitárias, solidárias, menos injustas. Ledo engano! O mundo está ficando ainda mais incompreensível para mim, onde uma Kim Kardashian é um modelo de sucesso e se enriquece cada dia mais, enquanto aqueles que exercem profissões vitais e imprescindíveis lutam para manter um emprego cujo salário mal paga suas contas.
Nesse ano de 2020, estamos vivenciando uma crise sem precedentes na idade moderna provocada pela pandemia do Covid-19. Num curto artigo sobre as lições a serem tiradas desse confinamento em escala mundial, a socióloga franco-israelense Eva Illouz afirma que nós devemos nossa sobrevivência aos homens e mulheres que trabalham nos supermercados, hospitais, limpando as ruas, aos entregadores e à todos aqueles que exercem profissões essenciais, e que esse evento mostrou "a vacuidade de celebridades e financistas enquanto os que ocupam atividades habitualmente invisíveis e desvalorizadas revelaram-se ser nossos pilares". Ela termina dizendo que nosso mundo "normal" funciona com uma escala de valores falsa e invertida.
Foi preciso, então, uma catástrofe sanitária mundial para que meu pensamento infantil encontrasse um respaldo concreto. Encontrei, enfim, alguém que pensa como a menina que eu era. A diferença entre mim e Eva Illouz reside no fato de que eu, definitivamente, não acredito que a humanidade tirará qualquer lição daquilo que, como diria o grande Caetano Veloso, "nesse momento se revelará aos povos e surpreenderá a todos, não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio".
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