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Eu, branca
Nunca contei o ocorrido a minha amiga e nem ousei falar disso por falta de provas, mas pude confirmar minhas suspeitas recentemente. Ela vai descobrir se ler esse post.
Há alguns anos inaugurou um café na minha cidade do tipo que eu gosto, com sofás e capuccinos, cosy e acolhedor. Comecei a frequentá-lo e sempre fui recebida com um largo sorriso. Num dos meus aniversários, minha amiga me sugeriu tomarmos um café-da-manhã juntas, e sugeri esse lugar. Cheguei um pouco antes, fui recebida como de hábito, sentei-me e esperei por ela. Ela chegou, sentou-se, mas quando vieram nos atender, a acolhida foi glacial, extremamente desagradável. Senti-me desconfortável e mal consegui engolir meu café da manhã, mas minha amiga nem percebeu. Olhei para as outras mesas e o atendimento estava sorridente como sempre. Perguntei-me porque estávamos sendo tratadas daquele jeito, tentando encontrar o detalhe que fazia a diferença na nossa mesa. O único diferencial que demorei a admitir era a cor da pele da minha amiga.
Minhas suspeitas foram confirmadas recentemente ao ler um artigo no Trip Advisor sobre esse café. No meio de muitos comentários elogiosos, um foi extremamente crítico quanto à acolhida, contada nos detalhes, e concluindo que havia ficado claro, para ela, que foi recebida diferentemente dos outros por ser negra.
Se eu demorei a aceitar que aquele atendimento execrável devia-se ao fato de minha amiga ser negra, não foi pela ingenuidade de achar que o racismo não existe, muito pelo contrário. Afinal, nasci no Rio de Janeiro, fui testemunha do racismo escancarado, violento e cruel durante todos os vinte e cinco anos vividos ali, mas queria ter provas para não acusar injustamente alguém de um comportamento tão vil. Ao mesmo tempo, observar tão abertamente esse racismo sutil e pernicioso me fez cogitar. Principalmente pelo fato de a minha amiga sequer ter percebido aquela frieza e rispidez no modo como fomos tratadas: não fez nenhum comentário e achou tudo normal. Eu disse para mim mesma que isso se deve provavelmente ao fato de tal tratamento não ser tão incomum para ela, que se manteve meiga e sorridente o tempo todo. Pensei também, com muita tristeza, que além da violência aberta e desumana da qual os negros têm sido vítimas há séculos, além da discriminação no trabalho, policial e da estigmatização social, eles vivem num mundo hostil. Eu, branca, não volto em lugares onde me tratam assim. Mas que escolha eles teriam? Seria esse o tratamento ao qual são confrontados? Nunca saberei exatamente.
A socióloga americana Robin Diangelo lançou um livro intitulado "Fragilidade branca" no qual aborda a dificuldade que os brancos têm de se apresentarem através de uma descrição racializada, como brancos. Segundo ela, essa dificuldade vem de longe, ela seria o fruto do modo como a história é narrada em nossas sociedades ocidentais : "a história branca é a que serve de norma à História. Assim, o fato de precisarmos especificar que estamos falando da história dos negros ou das mulheres, sugere que eles se situam fora da norma". Em outras palavras, a identidade branca consiste em se considerar com um indivíduo isento de raça. A "fragilidade branca" não seria, então, uma fraqueza em si, mas, ao contrário, um meio poderoso de controle racial e de proteção das vantagens dos brancos. A recusa de se pensar como brancos seria, segunda essa autora, um meio de perpetuar uma sociedade que mantém uma desigualdade de fato, pois a branquitude seria associada à neutralidade ou à universalidade.
Essa autora não sugere que os bracos, individualmente, não encontrem obstáculos ou combates contra os quais precisa lutar, ela afirma simplesmente que o racismo não é um deles. E conclui dizendo que o primeiro passo para uma mudança na luta antirracista seria que os brancos se reconhecessem como brancos, integrantes de um sistema que funciona racialmente, e admitissem os privilégios associados a essa característica. Foi o que pretendi ao redigir esse post.
Livro: White Fragility: Why it's so hard for white people to talk about racism. Robin DiAngelo, Paperback, 2018.
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