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O tradutor e o "seu" autor
Não sei se todo mundo pensa assim, mas acho que nunca se deixa de amar alguém que se amou um dia. Amigos, namorados, professores… mesmo que a forma de amor mude com o tempo, aqueles que amamos profundamente de uma forma ou de outra serão sempre especiais aos nossos olhos. Não creio que seja possível olhar para um ex-namorado sem que venham à nossa mente lembranças de momentos partilhados; olhar para uma amiga de infância sem pensar nas travessuras feitas juntas, compartindo sonhos de um futuro idealizado. Hoje, como consequência de minhas escolhas pessoais, minhas relações amigáveis são majoritariamente virtuais, mas estas pessoas habitam em mim, fazem parte de quem eu sou, cada uma delas acrescentou um pouco ao adulto no qual me tornei.
E penso que tem um pouco disso na relação que estabeleço com os autores que traduzi. Não sei se meus colegas tradutores partilham este mesmo sentimento, mas instauro uma relação particular com os "meus" autores. Tenho a sorte de ter traduzido autores que admiro (pergunto-me como deve ter sido para o excelente tradutor Olivier Mannoni ao traduzir Mein Kampf). É uma relação meio estranha que eu nunca teria aceitado na minha vida amorosa, pois é unilateral, desproporcional e não correspondida. Totalmente platônica. Afinal, a maioria não tem a menor ideia de quem eu seja, muitos até já não estão mais neste mundo, e os que ainda estão por aqui, pertencem a uma outra dimensão social.
Acho inevitável que seja assim, pois passei meses com cada um deles, tentando alegremente me introduzir no que eles têm de mais íntimo, ou seja, sua consciência, seu pensamento, seu espirito, para captar o que queriam dizer e respeitar sua intenção. Durante semanas, estes autores me habitaram, trazendo também apreensões que me despertaram muitas vezes assustada no meio da noite pelo medo de ter me enganado sobre o sentido de uma frase ou de uma expressão, de lhes ter sido infiel, em suma. Se a infidelidade é uma noção sujeita a diversas interpretações quando se trata de uma relação amorosa e adaptável ao que cada casal deseja para si (nos países realmente democráticos), aqui ela é inequívoca, pois na minha forma de exercer a tradução literária, tento reproduzir o intuito, as entonações, o raciocínio e o estado de espirito do autor com palavras que muitas vezes não têm equivalente em português.
No ano passado, o ilustre historiador francês Paul Veyne faleceu. Passei quase um ano com ele tentando entender as complexidades do evergetismo helenístico através de sua argumentação fina e sofisticada, apresentada em seu clássico "Pão e Circo - Sociologia histórica de um pluralismo político". Ele me guiou pelos meandros dos aspectos irracionais da política na antiguidade, como se estivesse falando comigo. Aqueles meses com ele foram intensos e estimulantes, durante os quais aprendi muito sobre um assunto fascinante sobre o qual eu não sabia nada. Quando soube de sua morte, fiquei triste, como quando se perde um tio distante, porém querido.
Recentemente ousei entrar em contato para me apresentar a uma autora cujo livro traduzi ano passado, dizendo-lhe: “Você não tem a menor ideia de quem eu sou, mas eu passei os últimos quatro meses tentando entrar na sua cabeça”. Não sei o que ela sentiu ao ler esta frase, provavelmente me achou meio louca, em todo caso foi extremamente carinhosa comigo. Ao ponto de ter comprado e lido o meu livro autobiográfico, o que me deixou lisonjeada. O livro dela será lançado em muito breve no Brasil e o recomendo fortemente. As leitoras brasileiras poderão então não somente se deliciar com as aventuras parisienses da Mylène Desclaux em “As jovens mulheres de cinquenta anos”, mas também entender perfeitamente o que digo neste post, pois a autora usa muitas expressões tipicamente francesas num livro cheio de histórias picantes sob as quais o duplo sentido é onipresente.
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