• O sentido do "sim"

    O sentido do "sim"É possível que Freud explique, mas até hoje eu mesma não sei exatamente porque casamentos me irritam. Não a instituição casamento que constitui a base social de muitas sociedades, a qual eu respeito e na qual me sinto bem com meu chéri. Acho que o que mais me exaspera é o conjunto de imagens associadas principalmente às cerimônias de casamento cujo sentido parece ter-se perdido nos meandros do estilo de vida moderno. Bem fazem os povos de língua inglesa que distinguem ambos, atribuindo um vocábulo para cada um, wedding para a festa e marriage para a instituição. Pois embora eu ache que a importância dada ao cerimonial seja excessiva, respeito totalmente a união de duas pessoas de quaisquer sexos e modalidades. Afinal, como já diziam Lennon e McCartney, all we need is love. 

    Pensando bem, o que me deixa mesmo furiosa é uma certa visão romântica do casamento difundida através de filmes, novelas e romances, na qual a mulher aparece como a eterna suplicante diante de um macho estoico. Aquela que, desesperada, se joga no chão para pegar o buquê no casamento da amiga e que espera, com trêmula emoção, o pedido de casamento feito pelo homem, viril. Pedido esse que representa, nessa construção imaginária, o ápice simbólico da felicidade feminina, tolice extrema quando se sabe que, objetivamente, é a mulher que mais tem a perder nos moldes ainda atuais da vida a dois, nos quais as tarefas domésticas são exercidas majoritariamente por ela (estatisticamente comprovado), que acumula duas ou mais jornadas de trabalho. E essa visão quimérica é mistificada pelas opulentas festas de casamento que concretizam o dia mais feliz das nossas vidas, com seus vários símbolos e adereços, e se impõem como um happy end, um rito de passagem a partir do qual as personagens seriam felizes para sempre. Na linguagem publicitária, eu diria que é uma propaganda enganosa.

    Todas as sociedades, modernas e primitivas, são pontuadas de rituais que, em seu aspecto funcionalista, deveriam atribuir significados à vida social. Mas é justamente esse sentido que me parece nem sempre ser considerado, levando as pessoas a práticas mecânicas nas quais ele desaparece sob a forma de uma obrigação social que nada tem a ver com a simbologia ritual. O sentido atribuído a um rito era um assunto recorrente em minhas aulas de antropologia e a falta dele recebia até um nome, chamava-se neurose obsessiva, uma patologia psicanalítica que as ciências sociais tomaram emprestada para caracterizar comportamentos que as pessoas adotam sem saber exatamente porquê, frequentemente desconhecendo o sentido que as levaram a praticá-los. 

    Recentemente, porém, a descoberta de um dado histórico veio me reconciliar com esse ritual. Aprendi, com a historiadora Michelle Perrot, que a cerimônia de casamento se inscreve na história da transformação social da mulher, quando esta deixa de ser objeto para se tornar sujeito social. Esse momento seria, inclusive, a principal etapa dessa metamorfose, e deve-se ao papel exercido pelo cristianismo que, apesar de seu tradicional machismo, impunha a ideia de que homens e mulheres são iguais diante de Deus. Foi partindo dessa concepção que o consentimento das mulheres no sacramento do casamento passou a ser exigido a partir do século XIII. Até então, as moças eram forçadas a se casar com quem lhes fossem impostos pelas mais diversas razões (patrimonial, patronímica etc.) dentre as quais o sentimento não era evidentemente um critério considerado, muito menos o das mulheres. Com essa mudança, o consentimento da mulher se torna necessário, ela deveria dizer "sim" diante de a mais alta autoridade que naqueles anos era exercida pelos eclesiásticos, para confirmar que seu ato era deliberado. O consentimento feminino trouxe, com ele, o casamento por amor, uma grande novidade histórica, consequência direta do advento do sujeito mulher.  

    Quando terminei de ler essa entrevista há alguns dias, a visão que eu tinha dessa cerimônia se interverteu, de tradicional e conservadora tornou-se moderna e liberadora. Por total ignorância histórica, eu julgava uma cerimônia ritual negativamente quando, na prática, sua função social foi transformadora, confirmando, mais uma vez, a importância do sentido atribuído a nossos atos, mesmo - e talvez sobretudo - os que já foram automatizados por todos. Ao mesmo tempo, não podemos negar que, desde então, o mundo evoluiu e, com ele, as instituições sociais. Fiquei me perguntando, sem obter uma resposta, qual seria o sentido atribuído, hoje, a esse cerimonial? No que me diz respeito, continuo não gostando do véu e da grinalda.

     

    Entrevista com Michelle Perrot no Les Hors Série de L'Obs, " Peut-on échapper à la domination masculine ? " (Podemos escapar da dominação masculina?") n° 102, juillet 2019.

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