• O binarismo brasileiro

    O binarismo brasileiroQuem me conhece sabe que sempre fui fã de filmes franceses. Quando morava no Rio, buscava as salas que os projetavam, geralmente nas Alianças Francesas ou em pequenos cinemas como o Estação Botafogo. Lembro que era difícil encontrar companhia para assisti-los, alguns amigos me diziam que os filmes franceses pareciam terminar sem um enlace final e que a moral da história não parecia clara. Pensei, então, que possivelmente essa dificuldade de leitura de um filme francês por parte dessas pessoas se devesse ao fato de, ali, não saberem exatamente para quem "torcer", pois, neles, não há bandidos ou mocinhos, vilões ou heróis. Eles refletem a vida real em que nós, miseráveis humanos, temos qualidades e defeitos, fraquezas e grandeza na alma. Desse lado aqui do atlântico, sabe-se que a visão simplista e maniqueísta do mundo na qual o bem e o mal estão devidamente identificados não existe na vida real, aceita-se que a natureza humana é falha, os personagens são mostrados em toda a sua complexidade, com nuances, questionamentos, dúvidas, próprios à natureza humana. Uma mesma pessoa pode exercer ações nobres e ter alguns momentos de mesquinhez; ela pode ser vista por um amigo como incrível, mas pelo seu chefe como incompetente; pelo seu cônjuge como uma amante liberal, mas pelo seu filho como autoritária. Ninguém é totalmente bom ou totalmente mau, tudo depende do momento, da perspectiva, do contexto ou da situação. E isso inclui posicionamentos diante da diversidade de conjunturas políticas.

    Como, por exemplo, o do presidente francês Emmanuel Macron diante do movimento social dos coletes amarelos, inédito em sua História, devido à ausência de um interlocutor e de reivindicações claras. Ele revela, contudo, insatisfações sociais profundas que vão além das medidas tomadas pelo governo atual, pois esse movimento questiona o sistema econômico-financeiro como um todo, o que ultrapassa as fronteiras nacionais. Ele tem gerado manifestações violentas, com deterioração do patrimônio cultural e muitos feridos. Porém, tanto no discurso do presidente Macron quanto no da população em geral, é feita uma distinção clara entre aqueles que reivindicam medidas justas em prol de melhorias na qualidade de vida, e aqueles que usam a violência como expressão. Separa-se, assim, objetivamente, o joio do trigo. 

    No Brasil as coisas não são bem assim. É um fato incontestável que a sociedade brasileira tenha se dividido em dois grandes grupos desde as últimas eleições presidenciais: os que se posicionavam a favor e contra o candidato Bolsonaro, distinção que se perpetua contundentemente mesmo depois da posse do presidente. É o próprio da democracia pessoas manifestarem seu apoio a candidatos diferentes. O que não me parece tão banal, é essa divisão se manter, hoje, sem modulações, sem distância, sem análise. Afinal, todos os cidadãos brasileiros deveriam estar unidos contra ou a favor de medidas adotadas pelo governo atual, independentemente da escolha do voto de cada um. Somos todos cidadãos brasileiros almejando o bem comum ou, vulgarmente falando, estamos todos na mesma canoa furada. Tenha-se votado ou não no atual presidente, as medidas adotadas em seu governo deveriam ser analisadas com base no benefício que ela deveria trazer para a sociedade como um todo. Mas não é o que está acontecendo. Essa dicotomia da sociedade brasileira, sem graduações, revela, para mim, o binarismo cultural que predomina em determinadas camadas da nossa sociedade.

    No sistema de pensamento binário dessa camada da sociedade brasileira, é necessário escolher um lado, identificar o bandido e o herói, precisa-se de vilões e mocinhos, sem os quais não se sabe para quem "torcer". Decidiu-se, então, que o bandido era o governo precedente e, consequentemente, tudo o que foi feito durante todos aqueles anos foi invalidado, os erros, mas também os acertos. Como diriam os franceses, jogou-se fora o bebê junto com a água da banheira. Não há separação entre o que foi feito de positivo para o país, não se considera dados estatísticos comprovados interna e externamente por órgãos apartidários reconhecidos internacionalmente, não há análise de fatos. Esse mesmo comportamento se expressa para aceitar tudo o que é feito pelo presidente atual, sem análise crítica das consequências de determinadas medidas, sem questionamento sobre que categoria social será beneficiada ou prejudicada por elas. Na continuidade desse raciocínio, a política é discutida como se discute um jogo de futebol, com e emoção e paixão. Mas o fato é que não se "torce" por um governo. A ideia de "torcer para dar certo" subentende a passividade do povo, a submissão do cidadão diante das ações governamentais, a aceitação sem reivindicação. O atos políticos devem ser analisados, questionados ou endossados, de acordo com o benefício que tais medidas trarão para a sociedade. Não se "torce" para um governo como se estivesse num fla-flu, cujo resultado final depende exclusivamente dos jogadores. No jogo político, o eleitor-cidadão tem um papel ativo e influencia no resultado final. Conceber a política como se o cidadão exercesse um simples papel de observador como um torcedor de futebol não considera que a instauração de um estado democrático é o fruto da racionalidade política. 

    Nenhum governo será perfeito, nenhum governo agradará a todas as categorias sociais. Contudo, é sabido que o estabelecimento de uma sociedade moderna é fundado na primazia do bem comum que deve se posicionar impreterivelmente acima dos interesses pessoais e particulares em qualquer governo, qualquer que seja sua orientação ideológica. Analisemos dados, fatos, medidas e suas consequências para além das pretensas intenções, para além dos discursos. A leitura do mundo deve ir além da ponta visível do icebergue. 

     

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