• Nosso corpo, um ecossistema

    Em meu precedente post "Nosso cérebro original", eu havia comentado os doze primeiros minutos do documentário "Le ventre, notre deuxième cerveau". Muito rica em informações, essa primeira parte era, contudo, somente um preâmbulo para o conteúdo restante, que, na minha opinião, envolve questões metafísicas fascinantes. 

    As descobertas científicas que revelaram a existência de um segundo cérebro e as relações estabelecidas entre este e o de cima foram feitas a partir de um desfuncionamento nessa troca manifesta na síndrome do intestino irritável. Os cientistas constataram que os neurônios de um paciente doente são muito mais ativos que os de um paciente são. O sistema nervoso do paciente doente aparece como hiperativo, revelando uma neurose intestinal desencadeada por um evento traumático. A partir de então, o paciente é tratado com métodos usados nas disciplinas psíquicas dentre os quais a hipnose. A química interna de nosso corpo influencia nossa mente e até mesmo nossos sonhos, ambos sensíveis às emissões de serotonina produzida em nosso cérebro de baixo.

    Os questionamentos que se impõem nesse momento das pesquisas são, para mim, desestabilizantes. Pois, se o sistema nervoso entérico, ao enviar sinais ao nosso cérebro, pode afetar o modo como nos sentimos, eles podem também agir no modo como percebemos o mundo através da nossa capacidade de pensarmos positiva ou negativamente, de resistirmos à depressão ou à ansiedade. Estaria, nosso inconsciente, situado em nosso estômago? O próprio Freud já dizia que o ego talvez se encontrasse ali. Ora, o lugar onde o inconsciente se encontra importa pouco, mas essa afirmação revira de ponta cabeça a percepção que temos de nós mesmos. 

    Um aspecto revolucionário dessa descoberta é a possibilidade de tratar mais eficazmente doenças neurovegetativas como a doença de parkinson, que teria sua origem no estômago. Até então considerada como uma doença que atinge uma zona particular do cérebro conhecida como substância preta, os pesquisadores constataram que ela é frequentemente precedida de problemas digestivos cujos sintomas migram para o cérebro até atingir suas faculdades intelectuais. A impossibilidade de uma biópsia no cérebro de um ser vivo impediam estudos essenciais, a descoberta da origem da doença no estômago possibilitará a realização de biópsias em seres vivos que anteciparão o diagnóstico em até vinte anos, permitindo um tratamento que atrase a evolução da doença. 

    Embora as pesquisas sobre trocas neuronais sejam recentes no ocidente, a medicina tradicional chinesa trabalha com as ligações existentes entre as diferentes partes do nosso corpo há milênios. Ela regula os fluxos energéticos que circulam no corpo, através, inclusive, da acupuntura abdominal, que age sobre nossas funções cognitivas e regula nossas emoções. Para o Dr. Bo Zhiyun, especialista nessa técnica, é o cordão umbilical que exerce um papel central no crescimento do embrião mesmo depois de ter sido cortado: ele seria o centro de desenvolvimento do corpo humano, cuja coordenação exercida sobre o resto do corpo é ainda pouco conhecida. 

    Mas as revelações não param aí. Os pesquisadores que trabalham sobre o eixo cérebro-estômago descobriram que nosso tubo digestivo é habitado por cem mil bilhões de bactérias. Ou seja, um microcosmo no macrocosmo mais denso do planeta. Existem mais bactérias no nosso estômago que células em nosso corpo. Seríamos, assim, mais bacterianos que humanos. Em suma, somos um ecossistema! 

    Como essas descobertas são recentes, os pesquisadores ainda estão investigando como funciona esse ecossistema apesar de já lhe terem dado um nome: microbiota. Carregamos de um a dois quilos de bactérias que produzem 30% das nossas calorias. Elas digerem uma parte dos alimentos que comemos para fabricar energia e nos ajudam a verificar o que é tóxico ou não para nosso corpo. Sem elas não sobreviveríamos. Esses estudos nos informam também que as características da microbiota de cada um são únicas, como nossas impressões digitais, e sua constituição depende de diversos critérios que não estão relacionados ao sexo, à raça ou à idade e nem mesmo ao lugar onde nascemos. Distinguimo-nos uns dos outros de acordo com a população de microbiotas que nos habitam, e somos divididos em três grupos denominados enterótipos, cujo diagnóstico facilitará o tratamento de diversas doenças num futuro próximo.

    Essas descobertas são revolucionárias para a medicina, mas não somente: nesses tempos sombrios de recuo identitário nos quais o racismo e o nacionalismo se afirmam como força política, uma caracterização do ser humano para além do lugar do nascimento, da cor da pele ou do sexo será mais que bem-vinda! 

     

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  • Commentaires

    1
    Diana Margarita
    Dimanche 9 Décembre 2018 à 19:03

    Aguardando a terceira parte! 

    Isso aqui é muito mais interessante que Star Wars!

      • Lineimar
        Mardi 11 Décembre 2018 à 08:45

        Também acho que é mais interessante que Star Wars. happy

        Esse é o último artigo da saga. Esse documentário poderia ter rendido muitos posts, mas tem tanto assunto que estou louca para compartilhar aqui. 

        Fico contente que tenha gostado.

        Obrigada Diana!

         

         

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