• Contorno no VietnamDe um modo geral, é difícil sabermos quando as representações que fazemos de uma determinada sociedade ou cultura começaram a se construir em nosso próprio imaginário individual. No caso do Vietnam, conheço exatamente quando a idéia que tinha desse país, até então, começou a se formar, essa imagem ancorou-se em mim com mais força do que os relatos de guerra ou as estatísticas econômicas conhecidas de todos: ela surgiu quando assisti ao filme Odeur de papaye verte, pequena obra prima cinematográfica filmado no Vietnam, cujas sublimes imagens dominadas pela doçura e leveza de sua personagem principal, me fizeram acreditar que assim essa sociedade também o seria. Ledo engano.

    Herança das violentas guerras recentes, consequência de um regime socialista totalitário, do instinto de sobrevivência cotidiano, seja qual for a razão ou a causa, em minha curta experiência nesse país percebi que os vietnamitas não têm o sorriso fácil, principalmente se comparados com os coreanos que nos recebem como se estivéssemos em sua própria casa. Observa-se, ali, uma certa dureza nas relações sociais.

    A pobreza é visível na caótica e barulhenta Hanoi, capital política do país, cuja infraestrutura se mostra, ainda hoje, carente de tudo. Não visitamos outras localidades para comparar, talvez as cidades mais turísticas do sul sejam melhor providas de estradas, ruas ou calçadas, mas foi a primeira vez em uma viagem turística que fiquei com pressa de ir embora. Paradoxalmente, a comida é, na minha opinião, a melhor da Ásia, a mais variada, a mais perfumada, a mais inventiva e saborosa de todas.

    As culturas de arroz à poucos quilômetros da cidade são cultivadas manualmente proporcionando imagens autênticas da vida no campo tais quais as recebemos por esses lados do planeta, dominada por mulheres trabalhando a terra, usando o chapéu cônico de palha, verdadeira instituição nessa sociedade. Como em um cartão postal.

    A Baia de Halong é realmente linda, possui uma atmosfera misteriosa, decorada de dezenas de pequenos pães de açúcar cobertos de uma leve neblina, de onde saem, inesperadamente, vendedoras ambulantes que propõem seus produtos em pequenos barcos que elas corajosamente levam, à remo, de um lado para o outro da baía, indo até lá onde estão os eventuais compradores, majoritariamente turistas.

    O passeio em piroga pelo rio Yên que corta os campos de arroz ficará também como uma mágica lembrança desse desconcertante país.

    Decididamente, o Vietnam é um destino para os bichos grilos do mundo inteiro que acreditam nos malefícios da tecnologia moderna mas que possuem a capacidade de fazer abstração das difíceis condições de vida dos habitantes desse país, vítimas, como muitos outros, da mediocridade dos seus governantes.

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  • A particularidade da língua piraha Semana passada assisti a um documentário no canal franco-alemão ARTE extremamente fascinante. Ele continha tanta informação que encontrei uma certa dificuldade em escolher através de que ângulo comentá-lo.

    Ele abordava as particularidades da língua pirahã, falada pelos Pirahãs, um grupo étnico que vive nas bordas do Rio Maici na Amazônia brasileira com nenhum ou pouquíssimo contato com outros grupos étnicos, ainda menos com membros da sociedade nacional de quem têm medo. Ele começa com a experiência do professor Daniel Everett da Universidade de Berkeley, Califórnia, que viveu dez anos com os Pirahãs nos anos 1970, onde fez uma descoberta revolucionária pois ela enternece a teoria do sistema único de linguagem construída pelo grande linguista Noam Chomsky nos anos 1950, até então nunca questionada. Vou tentar resumir aqui algumas das particularidades da língua pirahã que conduziram a tal polêmica:

    A língua pirahã é falada somente pelos aproximadamente 300 Pirahãs que compõem, hoje, essa etnia; os Pirahãs falam somente essa língua; ela pode ser falada, cantada, assuviada ou sussurrada; uma única palavra tem vários significados diferentes, é o ton com a qual ela é pronunciada que distingue o sentido atribuido; ela não possui números ou qualquer sistema de cálculos nem vocabulário para cores mas possui um nome para todas as espécies vegetais e animais da floresta onde vivem, que permite descrever com detalhe as propriedades de cada planta e o modo de vida do menor inseto ou ser vivo ali presente; ela não possui conjunções; uma mesma palavra designa o pai e a mãe, os pirahãs possuem um sistema de parentesco extremamente simples, não havendo vocabulário para designar relações além dos pais e irmãos. E o aspecto mais controverso que gerou a teoria que engendraria a polêmica consiste na constatação de que a língua pirahã não possui passado nem futuro, ela é conjugada somente no presente.

    De acordo com a interpretação desse pesquisador, os Pirahãs vivem absolutamente no presente, eles concentram seu espírito e pensamento em suas necessidades imediatas sem remorsos sobre o passado nem angústias sobre o futuro. Consequentemente essa língua seria não-recursiva. É a impossilidade de recursividade de uma língua que contraria a teoria central de Noam Chomsky totalmente fundada na ideia de uma gramática universal. Para esse linguista, a capacidade linguística da gramática estaria inscrita no genoma humano. Ela seria o componente científico da linguagem. E essa faculdade da linguagem humana se resumiria, por sua vez, na universalidade da recursividade. 

    Ao afirmar que a língua dos Piranhãs não apresenta a possibilidade recursiva, assume-se então que a linguagem não é necessariamente recursiva. Ê a cultura em total simbiose com a natureza e dominada pelo sentimento de felicidade que formata a língua pirahã. O que leva a constatação que a cultura afetaria não somente as palavras mas também a gramática de uma língua. O que, por sua vez, desmente a ideia da universalidade da gramática tal qual ela havia sido até então concebida, que constitui o principal pilar da teoria fundadora de Chomsky.

    Pelo que pude entender no documentário, essa polêmica ainda está no ar pois Everett encontra imensas dificuldades para apresentar o resultado de suas pesquisas no mundo acadêmico. Mas o que me fascinou foi perceber que suas descobertas vão muito além de sua vertente linguística e da polêmica universitária na qual se encontra. Elas atingiram esse pesquisador no seu mais profundo ser. O então missionário Daniel Everett que foi morar na Amazônia para evangelizar os Pirahãs acabou sendo convertido por eles. A perceptível e contagiante felicidade dominante nessa comunidade tornou sua missão inútil e obsoleta pois o que representa a ideia de "um mundo melhor" implícita nas promessas de salvação para um povo que é feliz aqui e agora? A surpreendente consequência dessa experiência transformadora é saber que esse ex-missionário convicto afirma hoje ser ateu. O feiticeiro enfeitiçado.  

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  • Tropeços nos trópicos Tropeços nos trópicos é o título do livro do americano Michael Kepp que reúne algumas de suas crônicas publicadas nós últimos anos na Folha de São Paulo. Além do atraente título, foi o subtítulo do livro que chamou minha atenção: "crônicas de um gringo brasileiro". Nelas, Michael Kepp confessa alguns dos seus pequenos pecados ordinários, muitos deles associados, de uma forma ou de outra, às diferenças culturais vivenciadas por um missouriano no Rio de Janeiro, onde mora há quase trinta anos. E foi justamente o olhar de um americano sobre a minha cidade natal que me interessou particularmente. Intrigou-me saber o que o levou ao lugar que eu mesma deixara vinte anos atrás.

    O livro possui uma linguagem agradável que implica uma proximadade com o leitor, seu autor se desnuda ao contar, inclusive, algumas de suas experiências íntimas. Característica que eu aprecio particularmente pois anos de estudos "científicos" me formataram para fazer exatamente o contrário, ou seja, criar uma distância com o texto para evitar, justamente, que o leitor detecte o ponto de vista pessoal do autor. Apesar de tê-lo comprado para meu marido francês com a esperança de convencê-lo a voltarmos para o Brasil, percebi, ao terminar o livro, que foi um outro aspecto da leitura que me marcou.

    Nesses vinte anos que deixei o Rio tenho tido uma relação estreita com a França e os franceses. Conheço bem o ponto de vista deles sobre o Brasil, suas reações ao visitarem o país, o que eles adoram e o que detestam em nosso comportamento. Através da leitura desse livro, pude constatar, mesmo que superficialmente, que as observações críticas e os afetos de um americano com relação aos brasileiros são muito próximos aos dos franceses.

    O que levou-me à teoria construída por Philippe Nemo sobre a existência de uma cultura ocidental comum (o ocidente ao qual me refiro, aqui, seria a sua noção política e não geográfica). De acordo com esse autor, essa cultura ocidental teria sido estruturada em cinco momentos essenciais que foram: a invenção da ciência pelos gregos, a do direito privado e do humanismo por Roma, a profecia ética e escatológica propagada pela Bíblia, a revolução papal dos séculos XI e XIII e enfim o que conviu-se chamar de "as grandes revoluções democráticas modernas". Esses cinco momentos evolucionários teriam provocado, segundo Nemo, uma mutação sem precedentes nas relações humanas constituindo uma cultura comum às sociedades que foram palco de tais eventos, mesmo que anacronicamente. Essas sociedades são as que compõem a Europa e a América do Norte.

    Embora nós, latino-americanos, sejamos considerados culturalmente próximos do ocidente por termos vivenciado um ou outro dos eventos acima descritos devido, também, ao fato de sermos produto de uma colonização europeia, não somos, contudo, membros integrantes desse grupo. O que engendraria, então, as diferenças culturais entre o norte e o sul, o estranhamento e a atração compartilhada entre americanos e europeus quando encontram-se nos trópicos.

    Claro que esse atalho analítico é superficial e resumido ao extremo. Meu objetivo é abrir uma discussão. Termino, então, esse pequeno post com uma provocação. Quem sabe não cheguemos à irônica conclusão, algum dia, que os franceses e os americanos possuam mais em comum do que sua relação recíproca de amor e ódio gostaria de admitir?... 

    Tropeços nos trópicos - crônicas de um gringo brasileiro, RJ, Editora Record, 2011.

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