• Os limites do meu feminismo

    Os limites do meu feminismoEntre Montpellier e Lançon de Provence, sozinha, em meu carro, sob um sol de verão a pino. Acabei de deixar meu filho com os avós. 

    Em dezoito anos de casamento e quinze anos de maternidade, perdi o hábito de escolher, sem consulta prévia, sem discussão e negociação, o próximo destino ou o caminho a tomar para atingi-lo. Decidi, unilateralmente, pegar as estradinhas provençais, mais longas, para admirar os ciprestes, os campos de lavanda típicos da região e abrir as janelas para ouvir as cigarras onipresentes no sul da França. Esse trajeto muito provavelmente não teria sido eleito majoritariamente se a família estivesse completa. 

    Depois de um ano difícil marcado por um doloroso luto, precisava mudar de ares para resguardar minha saúde mental. Logo que as férias escolares começaram, desci para a Provença, meu pequeno paraíso terrestre, onde ficarei sozinha por algumas semanas, até meu marido chegar. Em meu devaneio, lembrei que tinha que abastecer a geladeira, amanhã é domingo, tudo estará fechado. Parei no primeiro mercado que encontrei em meu caminho. Ali, diante das prateleiras repletas dos mais diversos patés, tapenades, panis, vinhos e queijos variados, tive um grande momento de hesitação: eu não lembrava mais muito bem do que eu realmente gostava. Há tantos anos priorizando os gostos de meu filho e marido, foi insólito me deixar levar assim, levianamente, pelo meu único e íntimo desejo culinário. Sentia-me quase culpada. Servi-me de salaminhos, azeitonas recheadas, pissaladière e algumas cervejas. Saí do mercado altiva, mas olhando para os lados, como se temesse que alguém me pegasse em flagrante delito. 

    Não posso negar que ao deixar meu marido na Alsácia e meu filho em Montpellier senti meu coração apertado. Fui meio que me arrastando. Porém, este momento de solidão está sendo fecundo ao me consentir uma reconexão comigo mesma, com meus gostos e desejos, muitas vezes afogados numa forma de altruísmo feminino inconscientemente implícito em nossos papeis de esposa e mãe. Como se uma forma de doação progressiva fosse se instalando sorrateiramente, como se uma anulação de si fosse se introduzindo imperceptível e docemente, pois é compensada por um amor incondicional, indescritível e imenso!

    Talvez por isso predomine esse sentimento estranho, misto de melancolia e orgulho por ter vencido meu pior inimigo - eu mesma - e decidido vivenciar esse momento de reencontro comigo mesma, do qual tomo consciência somente ali, dirigindo meu carro, sozinha, entre Montpellier e Lançon. De repente me senti feminista outra vez, como fui em meu passado não tão distante.

    Cheguei em meu destino, tomei uma ducha e, feliz, fui me deitar. Mas eis que um inseto asqueroso havia decidido, sem me consultar, fazer-me companhia. A primeira reação foi correr, mas como eu não tinha para onde ir, tive que enfrentá-lo. Travamos nossa luta. Peguei um pedaço de papel e, corajosamente, tentei pegá-lo com minhas próprias mãos, com a intenção de jogá-lo no jardim. Em tempos de extermínio animal, tento manter até mesmo insetos asquerosos vivos, necessários à biodiversidade. Ele foi reativo e mais esperto que eu, saiu correndo para debaixo da cama. Vencida, peguei meu travesseiro, fechei a porta do quarto e fui dormir no sofá da sala. Um a zero para o Forficula auricularia. No dia seguinte, bati na porta do proprietário pedindo socorro. E foi assim que descobri, perplexa, que os limites do meu feminismo adotavam as formas de uma vulgar lacraia.  

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