Num artigo da revista francesa L'Obs, a jornalista Véronique Radier comenta o mais recente livro do historiador e antropólogo Emmanuel Todd intitulado "Où en sont-elles ? Une esquisse de l'histoire des femmes" (Onde elas se encontram? Um esboço da história das mulheres). De acordo com este artigo, Todd considera que as mulheres colocaram-se injustamente contra os homens e estariam constituindo um regime de "matridominação", o qual representaria um grande perigo, pois põe em risco as estruturas fundamentais do pensamento humano.
O que ele parece não admitir, é que essa estrutura fundamental do pensamento humano tem sido dominada por diferentes formas de androcentrismo, ou seja, o referencial deste pensamento é o ponto de vista masculino.
Os avanços na obtenção de uma maior igualdade de direitos entre homens e mulheres são indubitavelmente significativos no ocidente como um todo. Numa perspectiva de médio prazo, atos e comportamentos que atualmente são banais, foram, outrora, proibidos às mulheres, como o voto, ter uma conta bancária, fazer longos estudos e muitas outras conquistas que integram, hoje, a visão do mundo das novas gerações. Porém, o combate mais árduo reside no androcentrismo inconsciente que se esconde por trás de comportamentos que mesmo os homens mais engajados a favor das mulheres parecem não perceber.
Há alguns anos, traduzi o livro "O gênero nas ciências sociais", uma coletânea de textos de releitura dos grandes clássicos, na qual pesquisadores contemporâneos esmiúçam textos fundadores das ciências sociais francesas para observar e eventualmente identificar diversas formas de androcentrismo, muitas vezes inconscientes. Textos de Max Weber, Alain Touraine, Bruno Latour, Michel Crozier, Pierre Bourdier, entre outros grandes nomes foram dissecados. A ideia consistia em apontar as derivas de um machismo que, segundo as coordenadoras da pesquisa, impregnava a sociedade e o discurso de uma época, na qual "o homem, identificado ao geral, era sempre a referência".
Assim, quando Lévi-Strauss afirma em seu estudo sobre os Bororo de 1936 que "o vilarejo inteiro foi embora no dia seguinte em umas trinta pirogas, deixando-nos sozinhos com as mulheres e as crianças em casas abandonadas", Martine Gestin e Nicole-Claude Mathieu observam que este enunciado é totalmente centrado no gênero masculino - já que o vilarejo inteiro excluía as mulheres e as crianças, revelador de um androcentrismo ligado a todas as formas de organização social, nas quais as mulheres seriam "o segundo sexo".
Outros exemplos ilustram este livro que, confesso, desmitificou, aos meus olhos, muitos de meus mestres. Mas, acima de tudo, ele veio mostrar o quanto, apesar de todos nossos esforços de objetividade (a palavra de ordem nos estudos de antropologia), nossos preconceitos influenciam nossas análises e são suscetíveis de falsear estudos essenciais.
Um exemplo recente vem da paleoantropologia. Durante anos, resumia-se o papel das mulheres pré-históricas ao âmbito doméstico e à colheita, enquanto aos homens eram atribuídas as corajosas funções de caçar grandes mamíferos, fabricar ferramentas de caça, armas de guerra e habitações. Essa divisão sexista das funções engendrou erros de interpretação de vestígios pré-históricos: até recentemente, decretava-se que um esqueleto era masculino pela simples presença de armas e ferramentas encontradas próximas ao restos mortais. Graças à aplicação do sequenciamento de ADN e de tecnologias modernas de datação, descobriu-se que, de fato, muitos destes esqueletos eram femininos, conduzindo a interpretações totalmente diferentes das que eram feitas até então. A pré-historiadora Marylène Patou-Mathis, especialista do comportamento neandertal, vem romper o antigo paradigma interpretativo e conta em seu livro "L'homme préhistorique est aussi une femme" (O homem pré-histórico é também uma mulher), que as mulheres também caçavam grandes mamíferos, fabricavam ferramentas e construíam habitações.
Ora, a implosão desse modelo interpretativo tem consequências que vão muito além da simples ideia que se fazia da vida na pré-história. Ela quebra também teorias muito atuais construídas com base nessa inverdade, dentre as quais a "lei universal" estabelecida pelo próprio Emmanuel Todd, segundo a qual os homens teriam o monopólio do coletivo e as mulheres uma visão que se limitava ao âmbito familiar, fundada no fato de que "as mulheres nunca caçaram" (o produto da caça seria partilhado com o grupo, enquanto o produto das colheitas seria restrito ao círculo familiar).
Enquanto aguardamos a reavaliação da teoria de Emmanuel Todd sobre os riscos da matridominação com base nessas recentes descobertas, fica a lição de que não é somente o relativismo cultural que pode nos tirar deste emaranhado de preconceitos socialmente construídos nos quais estamos todos presos, mas o relativismo histórico também exerce um papel essencial.
L'Obs - édition 2987, 20 de janeiro.
L'homme préhistorique est aussi une femme - Une histoire de l'invisibilité des femmes. Marylène Patou-Mathis, Allary Éditions, 2020.
Où en sont-elles ? Une esquisse de l'histoire des femmes, Seuil, 2022.