• O binarismo brasileiroQuem me conhece sabe que sempre fui fã de filmes franceses. Quando morava no Rio, buscava as salas que os projetavam, geralmente nas Alianças Francesas ou em pequenos cinemas como o Estação Botafogo. Lembro que era difícil encontrar companhia para assisti-los, alguns amigos me diziam que os filmes franceses pareciam terminar sem um enlace final e que a moral da história não parecia clara. Pensei, então, que possivelmente essa dificuldade de leitura de um filme francês por parte dessas pessoas se devesse ao fato de, ali, não saberem exatamente para quem "torcer", pois, neles, não há bandidos ou mocinhos, vilões ou heróis. Eles refletem a vida real em que nós, miseráveis humanos, temos qualidades e defeitos, fraquezas e grandeza na alma. Desse lado aqui do atlântico, sabe-se que a visão simplista e maniqueísta do mundo na qual o bem e o mal estão devidamente identificados não existe na vida real, aceita-se que a natureza humana é falha, os personagens são mostrados em toda a sua complexidade, com nuances, questionamentos, dúvidas, próprios à natureza humana. Uma mesma pessoa pode exercer ações nobres e ter alguns momentos de mesquinhez; ela pode ser vista por um amigo como incrível, mas pelo seu chefe como incompetente; pelo seu cônjuge como uma amante liberal, mas pelo seu filho como autoritária. Ninguém é totalmente bom ou totalmente mau, tudo depende do momento, da perspectiva, do contexto ou da situação. E isso inclui posicionamentos diante da diversidade de conjunturas políticas.

    Como, por exemplo, o do presidente francês Emmanuel Macron diante do movimento social dos coletes amarelos, inédito em sua História, devido à ausência de um interlocutor e de reivindicações claras. Ele revela, contudo, insatisfações sociais profundas que vão além das medidas tomadas pelo governo atual, pois esse movimento questiona o sistema econômico-financeiro como um todo, o que ultrapassa as fronteiras nacionais. Ele tem gerado manifestações violentas, com deterioração do patrimônio cultural e muitos feridos. Porém, tanto no discurso do presidente Macron quanto no da população em geral, é feita uma distinção clara entre aqueles que reivindicam medidas justas em prol de melhorias na qualidade de vida, e aqueles que usam a violência como expressão. Separa-se, assim, objetivamente, o joio do trigo. 

    No Brasil as coisas não são bem assim. É um fato incontestável que a sociedade brasileira tenha se dividido em dois grandes grupos desde as últimas eleições presidenciais: os que se posicionavam a favor e contra o candidato Bolsonaro, distinção que se perpetua contundentemente mesmo depois da posse do presidente. É o próprio da democracia pessoas manifestarem seu apoio a candidatos diferentes. O que não me parece tão banal, é essa divisão se manter, hoje, sem modulações, sem distância, sem análise. Afinal, todos os cidadãos brasileiros deveriam estar unidos contra ou a favor de medidas adotadas pelo governo atual, independentemente da escolha do voto de cada um. Somos todos cidadãos brasileiros almejando o bem comum ou, vulgarmente falando, estamos todos na mesma canoa furada. Tenha-se votado ou não no atual presidente, as medidas adotadas em seu governo deveriam ser analisadas com base no benefício que ela deveria trazer para a sociedade como um todo. Mas não é o que está acontecendo. Essa dicotomia da sociedade brasileira, sem graduações, revela, para mim, o binarismo cultural que predomina em determinadas camadas da nossa sociedade.

    No sistema de pensamento binário dessa camada da sociedade brasileira, é necessário escolher um lado, identificar o bandido e o herói, precisa-se de vilões e mocinhos, sem os quais não se sabe para quem "torcer". Decidiu-se, então, que o bandido era o governo precedente e, consequentemente, tudo o que foi feito durante todos aqueles anos foi invalidado, os erros, mas também os acertos. Como diriam os franceses, jogou-se fora o bebê junto com a água da banheira. Não há separação entre o que foi feito de positivo para o país, não se considera dados estatísticos comprovados interna e externamente por órgãos apartidários reconhecidos internacionalmente, não há análise de fatos. Esse mesmo comportamento se expressa para aceitar tudo o que é feito pelo presidente atual, sem análise crítica das consequências de determinadas medidas, sem questionamento sobre que categoria social será beneficiada ou prejudicada por elas. Na continuidade desse raciocínio, a política é discutida como se discute um jogo de futebol, com e emoção e paixão. Mas o fato é que não se "torce" por um governo. A ideia de "torcer para dar certo" subentende a passividade do povo, a submissão do cidadão diante das ações governamentais, a aceitação sem reivindicação. O atos políticos devem ser analisados, questionados ou endossados, de acordo com o benefício que tais medidas trarão para a sociedade. Não se "torce" para um governo como se estivesse num fla-flu, cujo resultado final depende exclusivamente dos jogadores. No jogo político, o eleitor-cidadão tem um papel ativo e influencia no resultado final. Conceber a política como se o cidadão exercesse um simples papel de observador como um torcedor de futebol não considera que a instauração de um estado democrático é o fruto da racionalidade política. 

    Nenhum governo será perfeito, nenhum governo agradará a todas as categorias sociais. Contudo, é sabido que o estabelecimento de uma sociedade moderna é fundado na primazia do bem comum que deve se posicionar impreterivelmente acima dos interesses pessoais e particulares em qualquer governo, qualquer que seja sua orientação ideológica. Analisemos dados, fatos, medidas e suas consequências para além das pretensas intenções, para além dos discursos. A leitura do mundo deve ir além da ponta visível do icebergue. 

     

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  • O rosa e o azulAo escolher o título desse post, quis fazer um paralelo com o livro O Vermelho e o Negro de Stendhal. Porém, mesmo se esse autor aborda as imbricações de gênero, classe social e religião em seu grande romance, o Brasil de Bolsonaro não é a França da Restauração. Embora qualquer comparação seja fortuita e leviana, não pude evitar de fazer a brincadeira com o nome das cores rosa e azul, objeto de uma recente polêmica na sociedade brasileira bem mais significativa do que parece. 

    Observei reações diversas à declaração da Ministra Damares Alves ao dizer que meninas devem usar rosa e os meninos azul. Adorei ver artistas, políticos e pessoas anônimas postando fotos vestidos de rosa ou azul num ato de divertida desobediência civil numa época dominada pelas redes sociais. É um modo legítimo de transmitir um desacordo. Mas houve também quem dissesse que deveríamos nos preocupar com questões mais graves do que a cor da roupa. Parece-me inquestionável que existam questões mais graves na sociedade brasileira de hoje, porém, sabemos todos que a questão aqui não se limita à cor da roupa. Ela vai muito mais além.

    O fato é que a vida social é construída de símbolos que transmitem significados múltiplos. A simbologia é muitas vezes mais enfática e incisiva que longos discursos, pois envia uma mensagem instantânea ao nosso cérebro, geralmente mais duradoura. Nesse caso em particular, a ministra não quis determinar que cores deveríamos usar, ela sabe pertinentemente que não tem o direito nem o poder de dizer como cada um deve se vestir. Nessa frase simples e curta, a Ministra Damares Alves quis passar uma mensagem carregada de um significado sem ambiguidades: ela vem afirmar que no que estiver ao alcance do seu ministério, os papeis de gênero serão claramente definidos, e o sexo determinará o lugar de cada um na sociedade. 

    A divisão da sociedade pelo gênero existe em diversas sociedades tradicionais contemporâneas. Essa divisão consiste em construções sociais que se apresentam de diversas formas pelo mundo. Muitas são, inclusive, matriarcais, ou seja, a liderança é exercida por mulheres: os Bribri, na Costa Rica, são governados por mulheres, as únicas que têm o direito de possuir terras e resolver problemas vetados aos homens; para os Mosuo, no Tibete, a autoridade social também cabe às mulheres, assim como para os Nagovisi da Papua Nova-Guiné. Esses são só alguns exemplos.

    No Brasil, o modelo familiar tradicional é o patriarcal. Nele, a mulher é subordinada ao homem numa "visão estereotipada dos papeis de gênero [que] colocam o homem num papel de esfera pública e trabalho remunerado e a mulher na esfera privada, cuidando do lar e da família". Essa visão implica a superioridade simbólica do homem, a quem tudo é permitido, e a inferioridade simbólica da mulher, a quem direitos foram negados durante décadas e cujo espaço social é extremamente limitado.

    Porém, modelos de sociedades tradicionais são incompatíveis com a forma de organização moderna, pois é o próprio da modernidade romper com as tradições. Ela "se constitui com critérios próprios, e não com relação a um passado estéril" e busca novos modelos de organização política que colocam o indivíduo no centro da sociedade. A modernidade estabelece o princípio da igualdade de todos perante a lei, pois, como afirmou Alexis Nouss, "o individualismo moderno é o fundamento da democracia, e não o inverso". Essa igualdade individualizada é a base do sistema democrático e deveria apagar as diferenças sociais, sexuais e raciais na reivindicação dos direitos de cada um. 

    Nenhum defensor da igualdade de direitos pretende negar diferenças biológicas ou comportamentais entre o homem e a mulher, mas afirmar que somos iguais em direito apesar delas. Creio, então, que devemos ficar atentos à simbologia por detrás da aparente descontração. Não minimizemos qualquer discurso por mais divertido que pareça, pois ao procurar retornar à uma atribuição de papeis conforme o gênero, a nova ministra vem, consequentemente, recusar a igualdade de direitos políticos, econômicos, culturais, sociais e jurídicos à mulher e aos que não se inserem no modelo familiar tradicional brasileiro reivindicado por ela, no qual a separação de papeis é límpida como se os homens usassem azul e as mulheres usassem rosa. 

    Referências: 

    Entre o Rosa e o Azul: Uma Sociedade Regida por Papéis de Gênero, por Grazi Resende. 

    La modernité, Alexis Nouss, PUF, Paris, 1995.

     

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  • O particularismo do universalismoNa revista francesa L'Obs da semana passada, a filósofa Nadia Yala Kisukidi apresentava o livro " En quête d'Afrique(s) " do filósofo Souleymane Diagne e do antropólogo Jean-Loup Amselle em um artigo intitulado " L'universalisme est-il un particularisme ? " (O universalismo é um particularismo?). Nesse livro, esses dois pesquisadores submetem a oposição universal-particular ao pensamento pós-colonial e "descolonial", em voga na França, e afirmam que a cegueira de um certo universalismo colocaria em risco o universal, pois ele representaria a particularidade daquele que se proclama universal, neste caso, o Ocidente. Eles reivindicam um descentramento do pensamento para uma refundação das relações entre o Ocidente e a Africa sob novas perspectivas. 

    Há quinze anos eu havia abordado essa questão. Naqueles anos, Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant falavam da violência simbólica representada pela universalização dos particularismos ligados a uma experiência histórica determinada, tornando certos conceitos e noções irreconhecíveis e truncados. Eu apliquei essa afirmação ao conceito de democracia que havia se tornado, desde o fim da Guerra Fria, um modelo político universal, como se fosse adaptável a qualquer contexto sociocultural, um "kit" já pronto, esvaziado de seu sentido pela dissociação de seu contexto de emergência particular. A transformação desse conceito em fato social é o produto de uma história própria a grupos sociais que, pela revolução, instauraram uma outra visão de mundo pelo estabelecimento de uma nova organização política. 

    Na continuidade dessa lógica, Thierry Michalon nos falava, em 1998, do fracasso das tentativas feitas na Africa para enxertar instituições sob a forma de Estado moderno em sociedades tradicionais nas quais o sufrágio universal havia se tornado nocivo ao conduzir a uma democracia unanimitária, utilizada para afirmar o poder de antigos déspotas. 

    Quanto a mim, democrata convicta, eu afirmava, contudo, que todos os esforços de instauração de uma democracia efetivamente participativa seriam nulos se fossem aplicados do exterior para o interior, de cima para baixo, sem a consideração dos valores que orientam uma determinada sociedade. Eu dava então o exemplo da sociedade brasileira. Sabemos que na história desse conceito, cujo trajeto foi iniciado por Aristóteles e levado a Rousseau, o povo seria o detentor da soberania legítima. Consequentemente, a cidadania seria a fonte dos laços sociais e os indivíduos seriam todos iguais diante da lei. 

    Ora, essa configuração está muito distante da realidade no que diz respeito à hierárquica sociedade brasileira. Não somente a ideia de igualdade é, ali, abertamente recusada por uma parte significativa da população, mas a instauração de uma suposta democracia parece ter aberto o espaço para as mais diversas manipulações que inclui o questionamento desse regime, cujo mais significativo exemplo foi dado nas últimas eleições presidenciais: tendo o poder de escolher o representante para o cargo supremo, 57,8 milhões de brasileiros elegeram o candidato que enaltece o antigo regime ditatorial contra os quais os democratas tanto lutaram, e que defende a volta do autoritarismo governamental e da censura. Enquanto na França e nos Estados Unidos, os dois contextos de emergência desse conceito, a democracia é defendida como um princípio político fundador inalienável, no Brasil, seu aspecto representativo é apresentado como o único efetivo, ela se acomoda, nesse contexto, em sua cultura política autoritária secular. O povo soberano entrega, assim, democraticamente, o poder a seu próprio carrasco. Esse evento me parece ilustrar as dificuldades decorrentes do universalismo de noções e conceitos particulares, e revela o enorme paradoxo representado pela escolha de dar o poder àquele que retirará todo o direito de escolha. Resta aos que crêem na democracia igualitária como valor, a pratica  da resistência.

     

    Références :

    L'Obs du 20 décembre, page 116.

    L'institution imaginaire de la non-citoyenneté au Brésil : l'individu et la personne, Lineimar Pereira Martins, pages 73-83, in Usages sociaux de la mémoire et de l’imaginaire au Brésil et en France, Presse Universitaire de Lyon, collection CREA 2001. 

    O Brasil para inglês ver, Lineimar Pereira Martins, Clube de Autores, 149 páginas, 2002.

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  • Le particularisme de l'universalismeDans L'Obs de cette semaine, la philosophe Nadia Yala Kisukidi présente le livre " En quête d'Afrique(s) " du philosophe Souleymane Diagne et de l'anthropologue Jean-Loup Amselle dans un article intitulé " L'universalisme est-il un particularisme ? ". Dans leur livre, ces deux chercheurs soumettent l'opposition universel-particulier à l'épreuve des pensées post-coloniales et dé-coloniales, très en vogue en France, et affirment que la défense aveugle d'un certain universalisme mettrait en péril l'universel lui-même car il représenterait la particularité de celui qui se proclame universel, l'Occident en l'occurrence. Ils appellent à un décentrement de la pensée afin de repenser les rapports entre l'Occident et l'Afrique sous des perspectives nouvelles.

    Il y a quinze ans, j'avais, moi-même, abordé cette question. Ces années-là, Pierre Bourdieu et Loïc Wacquant parlaient de la violence symbolique représentée par l'universalisation des particularismes liés à une expérience historique donnée, rendant certains concepts et notions méconnaissables et tronqués. J'ai donc appliqué cette affirmation au concept de démocratie, devenu, depuis la fin de la Guerre Froide, un modèle politique universel, comme s'il était adaptable à n'importe quel contexte socioculturel, un " kit prêt à poser ", vidé de tout son sens par sa dissociation de son contexte d'émergence particulier. La transformation de ce concept en fait social est le produit d'une histoire propre à des groupes sociaux qui, par la révolution, ont instauré une autre vision du monde par l'établissement d'une organisation politique nouvelle. 

    Dans la continuité de cette logique, Thierry Michalon nous parlait, en 1998, de l'échec des tentatives faites en Afrique pour greffer des institutions sous forme d'Etat moderne sur des sociétés traditionnelles où le suffrage universel était devenu nocif lorsque cette fusion a engendré une démocratie unanimitaire, utilisée pour asseoir le pouvoir d'anciens despotes. 

    Quant à moi, démocrate convaincue, j'affirmais, cependant, que tous les efforts d'instauration d'une démocratie effective participative seraient nuls s'ils étaient appliqués de l'extérieur vers l'intérieur, du haut vers le bas, sans la prise en compte des valeurs qui orientent une société donnée. Je donnais alors l'exemple de la société brésilienne. Nous sachons tous que dans l'histoire de ce concept, dont le trajet a commencé par Aristote et conduit à Rousseau, le peuple serait le détenteur de la souveraineté légitime. Par conséquent, la citoyenneté serait la source du lien social et les individus seraient tous égaux devant la loi. 

    Or, il n'en est rien dans la très hiérarchique société brésilienne. Non seulement l'idée d'égalitarisme y est ouvertement réfutée par une parcelle significative de la population, mais aussi l'instauration d'une supposée démocratie semble avoir ouvert l'espace pour les manipulations les plus diverses, y compris pour sa propre mise en cause, dont l'exemple le plus significatif a été donné lors des dernières élections présidentielles : ayant le pouvoir de choisir son représentant pour la fonction suprême, 57,8 millions de brésiliens ont élu celui qui fait l'éloge de l'ancien régime dictatorial contre lequel les démocrates se sont battus, et qui prône le retour de l'autoritarisme et de la censure. Alors qu'en France et aux Etats-Unis, les deux contextes d'émergence de ce concept, la démocratie s'est érigée comme un principe politique fondateur inaliénable, au Brésil son aspect représentatif prend le dessus sur le participatif et s'accommode de sa culture politique autoritaire séculaire. Le peuple souverain rend, ainsi, démocratiquement, le pouvoir à son propre bourreau. Cet événement me semble bien illustrer les difficultés qui découlent de l'universalisme de notions et concepts particuliers, et l'énorme paradoxe représenté par le choix de donner le pouvoir à celui qui enlèvera tout droit de choisir. Il reste à ceux qui croient en la démocratie égalitaire en tant que valeur, la pratique de la résistance.

     

    Références :

    L'Obs du 20 décembre, page 116.

    L'institution imaginaire de la non-citoyenneté au Brésil : l'individu et la personne, Lineimar Pereira Martins, pages 73-83, in Usages sociaux de la mémoire et de l’imaginaire au Brésil et en France, Presse Universitaire de Lyon, collection CREA 2001. 

     

     

     

     

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  • A axiologia de Jair BolsonaroEm alguns dias, um novo presidente tomará posse no Brasil. Em diversos posts que publiquei no Facebook, comentei o quanto essas eleições foram marcantes para a sociedade brasileira para muito além do seu aspecto puramente político. Elas representam um real divisor de águas, pois o candidato eleito não veio modificar a ideologia política com a qual vai governar, ele já está modificando a axiologia da sociedade brasileira. 

    A axiologia seria, grosseiramente, o conjunto de valores que predominam numa sociedade. Em toda sociedade, existem diversos valores que coabitam, pessoas com opiniões, gostos e hábitos diferentes vivem juntos num mesmo espaço social. Porém, alguns valores predominam sobre outros, determinando o que seria correto ou errado, devido ou indevido e, em última instância, o que representa o bem e o mal num determinado grupo social. 

    O "viver junto" não é simples em sociedade nenhuma, e é por isso que existem regras e leis. Como diz o velho ditado, "a liberdade de um começa quando termina a do outro". Todos os grupamentos humanos evoluem, o que era indevido num determinado momento numa sociedade específica pode tornar-se correto, o que era um delito se banaliza e deixa de ser delito, e o que era uma ato comum pode tornar-se um crime passivo de prisão.  

    O sociólogo alemão Norbert Elias descreve em seus diversos livros o que ele chama de processo civilizatório ocorrido nas sociedades ocidentais da idade média até aos anos 1980. Esse processo inclui, entre outras coisas, o controle de nossas pulsões agressivas, inerentes ao ser humano, para o estabelecimento de uma sociedade respeitosa das diferenças no modo de ser, de pensar e agir de cada um. Esse autocontrole se complexifica conforme os grupamentos sociais evoluem, a tendência a um domínio cada vez mais refinado e sutil de si mesmo se torna indispensável para evitar a informalidade excessiva característica de uma sociedade permissiva. Norbert Elias era descendente de judeus e conheceu a barbárie da Alemanha nazista. Ele sabe do que fala.

    A vida em sociedade exige, assim, o autocontrole de cada um, custe o que custar. Esse autocontrole seria a condição sine qua non para uma sociedade harmoniosa e pacífica, para a viabilidade do viver junto. E é precisamente esse autocontrole que o novo presidente brasileiro veio quebrar ao produzir um discurso isento de filtros sociais ao hierarquizar hábitos, ao criticar diferentes modos de ser e de pensar, ao recriminar grupos específicos e classificar a sociedade que pretende governar pela cor da pele, lugar de nascimento, fé religiosa e preferências sexuais simplesmente por serem diferentes do que ele considera como certo. E, principalmente, ao fomentar a violência como a resposta para todos os males. Essa violência, cujo controle se encontra no centro do processo civilizatório, torna-se, sob seu governo, legítima.

    O novo presidente, ao legitimar a violência, o racismo, o sexismo e a discriminação social, considerados até então comportamentos sociais desviantes do que seria politico-socialmente aceito, reposiciona-os como valores válidos. Desde o início de sua campanha, um tabu civilizatório foi quebrado, o que era errado e indevido banalizou-se e vem tornando-se, pouco a pouco, os valores dominantes na sociedade brasileira. É através desses valores que a sociedade brasileira será vista e reconhecida dentro e fora do território nacional. São esses mesmos valores que se encontram no centro do processo civilizatório contra a barbárie e que têm sido combatidos desde a idade média nas sociedades ocidentais. 

    Quando o grande escritor alemão Stefan Sweig chegou ao Brasil nos anos 1940, ficou fascinado com o que encontrou. Ao escrever que o Brasil seria o país do futuro, Sweig referia-se a nossa tão proclamada democracia racial que se opunha à Alemanha nazista de então, cujo arianismo se construía como valor dominante. Espero profundamente que a nova axiologia bolsonariana não encontre um terreno fértil, e que o meu Brasil, aquele descrito por Sérgio Buarque de Holanda, cantado por Dorival Caymmi e defendido por humanistas do mundo inteiro, continue a se escrever com S até ao fim de seu mandato. 

     

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  • Au nom de la mèreIl y a quelques jours j'avais écrit un billet intitulé Quelle famille traditionnelle ? dans lequel j'avais donné quelques exemples de lignages qui ne correspondaient pas au schéma considéré traditionnel en Occident où le modèle père-mère-enfants est sacralisé. La famille traditionnelle serait, ainsi, dans diverses sociétés occidentales et avec différents degrés de profondeur, présentée comme l'unique modèle de constitution familiale valable. 

    Les transformations de ce modèle dans les sociétés modernes sont, cependant, inéluctables, inhérentes au processus démocratique, le conservatisme qui prétend le placer en tant qu'institution immuable est contre-productif et même incompatible avec le principe constitutionnel qui affirme que tous sont égaux devant la loi. Si, jusqu'alors, la domination masculine implicite dans la famille patriarcale était considérée " naturelle ", les revendications féministes d'égalité de droits viennent modifier cette structure. 

    En France, les premières dénonciations de misogynie ont été faites, selon Simone de Beauvoir, au XVème siècle par l'écrivaine Christine de Pisan dans ses livres Cité des Dames (1404) e Livre des trois vertus à l'enseignement des dames (1405). Depuis, beaucoup de droits ont été acquis par les femmes, certains sont aujourd'hui vus comme ordinaires, mais ils avaient été considérés un affront au moment de leurs revendication : le droit à l'éducation scolaire, le droit au vote, le droit d'avoir un compte en banque etc. 

    Malgré tous ces acquis, nous avons encore un long chemin devant nous dans la lutte contre un machisme que j'appellerai " résiduel ", celui caché dans l'imaginaire social qui se manifeste dans les gestes, les blagues, les regards et les attitudes, presque imperceptibles car ils ne sont pas perçus comme tel, mais dont la persistance serait une barrière pour une société vraiment égalitaire, sans entrave, dans un futur proche. Ces comportements inconscients sont les plus difficiles à combattre car ils ne peuvent pas toujours compter sur la force de la loi qui agit par une délégitimation progressive, jusqu'à ce que les membres d'une société donnée comprenne une fois pour toute, que tel acte est inapproprié et/ou offensif. 

    Consciente de ce processus, j'ai été surprise lorsque j'ai découvert qu'en France les enfants sont enregistrés au nom de leurs pères. Seulement celui de leurs pères. Cette transmission patrilinéaire du nom ne semble pas déranger les dizaines de femmes avec lesquelles j'ai pu discuter sur le sujet. Celles qui ont deux (ou plusieurs) enfants de pères différents ne se posent pas la question sur le fait que leurs enfants n'aient rien qui les identifient comme frères et sœurs dans ce qui constitue leur identité primordiale : leur nom. Leurs enfants ne partageront pas non plus ce trait identitaire avec leurs cousins maternels. L'individualité maternelle disparaît, ainsi, sous le poids de l'administration publique, elle se dilue peu à peu sous cette tradition qui n'a pas encore été réellement contestée même si la loi permet, depuis une dizaine d'années, l'inclusion du nom de la mère à côté de celui du père. Le fait que les femmes ne se soient pas vraiment interrogées sur l'absence de leur nom dans l'acte de naissance de leur progéniture m'a toujours semblé un grand paradoxe dans une société si cartésienne où le principe d'égalité est inscrit dans sa devise et fréquemment revendiqué. 

    Mon fils est né au Brésil, où il a équitablement reçu mon nom et celui de son père. Cependant, dans les transites d'enregistrement à l'état civil français, mon nom s'est perdu, il s'est évanoui dans les méandres de la loi. J'ai senti une drôle de sensation lorsque j'ai vu le nom complet de mon fils sans mon empreinte, sans la marque de mon existence, soustrait de ce qu'il aurait en commun avec mes neveux et nièces. J'ai fait une demande juridique pour que mon nom soit ajouté, pour qu'il ait le même nom partout. Il y a deux jours j'ai reçu la réponse positive du Tribunal. L'Etat a compris mes arguments, même si mon geste est parfois socialement perçu comme encore une de mes bizarreries, souvent attribué à une habitude culturelle. Non, mon acte a été réfléchi, mené par une conviction profonde. Au nom de la mère. De toutes les mères.  

     

     

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  • Em nome da mãeHá algumas semanas, escrevi um post intitulado Que família tradicional? no qual dei alguns exemplos de linhagens que fugiam ao esquema considerado tradicional no ocidente onde o modelo pai-mãe-filhos é sacralizado. A família tradicional seria, assim, em diversas sociedades ocidentais e com diferentes graus de profundidade, apresentado como único modelo de constituição familiar válido. 

    As transformações desse modelo nas sociedades modernas são, contudo, inevitáveis, inerentes ao processo democrático, o conservadorismo que pretende colocá-lo como uma instituição imutável é contraproducente e até mesmo incompatível com o princípio constitucional que afirma que todos são iguais diante da lei. Se, até então, a dominação masculina implícita na família patriarcal era considerada "natural", as reivindicações feministas de igualdade de direitos vêm modificar radicalmente essa estrutura. 

    Aqui na França, as primeiras denúncias de misoginia foram feitas, segundo Simone de Beauvoir, no século XV pela escritora Christine de Pisan em seus livros Cité des Dames (1404) e Livre des trois vertus à l'enseignement des dames (1405). Desde então, muitos direitos foram conquistados pelas mulheres, alguns dos quais são hoje totalmente banalizados, mas que haviam sido considerados uma afronta na época em que foram reivindicados: o direito à educação escolar, o direito ao voto, o direito a ter uma conta em banco, o direito de dirigir etc. 

    Embora todas essas conquistas sejam notórias, ainda temos um longo caminho pela frente na luta contra o machismo que eu chamaria de "residual", aquele escondidinho no imaginário social expresso em gestos, piadas, olhares, atitudes quase imperceptíveis pois não são vistos como tal, mas cuja persistência seria uma barreira para uma sociedade verdadeiramente igualitária, sem entraves, num futuro próximo. Esses comportamentos inconscientes são os mais difíceis de ser combatidos porque nem sempre podem contar com a força da lei que age como um deslegitimador progressivo, até que os membros da sociedade em questão entendam, uma vez por todas, que tal ato é inapropriado e ofensivo. 

    Consciente desse processo, fiquei muito surpresa quando descobri que, aqui, aos filhos é atribuído o nome do pai. Somente o do pai. Essa patrilinearidade parece não incomodar as dezenas de mulheres com as quais conversei sobre o assunto. Amigas que têm dois (ou mais) filhos de pais diferentes não se questionam sobre o fato de seus filhos não possuírem nada que os identifique como irmãos naquilo que constitui sua identidade primordial: seu sobrenome. Eles tampouco compartilham esse traço identitário com primos por parte de mãe. A individualidade materna desaparece, assim, sob o peso da administração pública, diluindo-se, pouco a pouco, sob uma linhagem patrilinear não questionada até então. Grande paradoxo numa sociedade tão cartesiana. 

    Meu filho nasceu no Brasil onde foi registrado equifinalizavelmente com meu nome e o do seu pai. Porém, nos trâmites de registro no estado civil francês, meu nome se perdeu, escafedeu-se nos meandros da lei, onde foi registrado somente com o nome de meu marido. Senti uma estranha sensação ao ver o nome completo do meu filho sem a marca da minha existência. Entrei com um processo civil solicitando que meu sobrenome fosse incluído no registro francês de meu filho. Há dois dias recebi o deferimento do mesmo. O Estado me deu razão, embora meu gesto seja socialmente percebido por aqui como mais uma das minhas esquisitices, atribuído a um hábito cultural. Minha ação não foi por hábito cultural, meu ato não foi automático nem espontâneo, mas levado por uma profunda convicção igualitária. Em nome da mãe. Em nome de todas as mães.

     

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  • Notre corps, un écosystème Dans mon précédent billet Le cœur dans le ventre, j'avais abordé les douze premières minutes du documentaire Le ventre, notre deuxième cerveau. Très riche en information, cette première partie n'était cependant qu'un préambule pour la suite du documentaire qui implique des questions métaphysiques fascinantes. 

    Les découvertes scientifiques qu'ont révélé l'existence d'un deuxième cerveau et les relations établies entre lui et celui d'en-haut ont été réalisées à partir d'un dysfonctionnement dans cet échange appelé le syndrome de l'intestin irritable. Les chercheurs ont constaté que les neurones d'un patient malade étaient beaucoup plus actifs que ceux d'un patient sain, le système nerveux du malade étant hyperactif, atteint d'une névrose intestinale déclenchée par un événement traumatique. Le patient est alors traité avec des méthodes habituellement employées dans les disciplines psychologiques, parmi lesquelles l'hypnose. La chimie interne de notre corps aurait une influence sur notre esprit ainsi que sur nos rêves, sensibles aux émissions de sérotonine produites dans notre cerveau du bas.

    Les questionnements qui s'imposent à ce moment-là de la recherche sont assez déstabilisants. Car, si le système nerveux entérique peut affecter notre manière de sentir, il peut aussi agir dans la manière dont nous percevons le monde par notre capacité de penser positivement ou négativement, de résister à la dépression ou à l'anxiété. Notre inconscient se situerait alors dans notre ventre ? Freud lui-même soulevait cette possibilité. On parle aujourd'hui de psychanalyse gastrique. Or, même si la place où le moi se situe importe peut, cette donne semble renverser la perception que nous avons de nous-mêmes, elle procède à une décentralisation de l'image que nous avons de notre corps. 

    Pour les scientifiques, l'aspect le plus révolutionnaire de cette découverte serait la possibilité de traiter certaines maladies neurodégénératives comme la maladie de Parkinson plus efficacement, car celle-ci pourrait avoir son origine dans le ventre. Jusqu'alors considérée comme une maladie qui atteint une zone particulière du cerveau appelée de substance noire, elle est fréquemment précédée de problèmes digestifs dont les symptômes migrent vers le cerveau jusqu'à ce qu'ils atteignent les facultés intellectuelles du patient. L'impossibilité de réaliser une biopsie dans le cerveau d'un être vivant empêchait l'avancée des études, alors qu'une biopsie dans les tissus du ventre est tout à fait faisable et pourra anticiper le diagnostique en vingt ans, permettant ainsi un traitement qui retarderait son évolution.  

    Alors qu'en Occident les recherches sur les échanges neuronales sont récentes, la médecine traditionnelle chinoise les manipule depuis des millénaires par la régulation des flux énergétiques qui circulent dans notre corps. Pour le Dr. Bo Zhiyun, grand spécialiste de l'acupuncture abdominale, cette technique agit sur nos fonctions cognitives et régule nos émotions. Selon lui, le cordon ombilical exerce un rôle central dans le développement de l'embryon même après avoir été coupé: il serait le centre du développement du corps humain, mais la coordination qu'il exerce sur le reste du corps est encore méconnue. 

    Les chercheurs qui travaillent sur l'axe cerveau-ventre ont aussi découvert que notre tube digestif est habité par cent mille milliard de bactéries, un microcosme dans le macrocosme plus dense de la planète. Il y aurait plus de bactéries dans notre ventre que des cellules dans notre corps. Nous serions donc plus bactériens que humains. Nous sommes un écosystème ! 

    Cet écosystème a été nommé par les scientifiques microbiote. Nous portons de un a deux kilos de bactéries qui produisent 30% de nos calories. Elles digèrent une partie des aliments que nous mangeons pour fabriquer de l'énergie et nous aident à trier ce qui est toxique pour notre corps. Ces études montrent que les caractéristiques du microbiote de chaque individu sont uniques, comme nos empreintes digitales, et leur constitution dépend de divers critères qui ne sont pas liés au sexe, à la race, à l'âge ou même à notre lieu de naissance. Nous nous distinguons les uns des autres selon la population de microbiotes qui nous habitent. Nous serions ainsi divisés en trois groupes appelés entérotypes. Dans un futur proche, l'analyse de nos microbiotes rendront le traitement de diverses maladies beaucoup plus facile. 

    Ces découvertes sont révolutionnaires pour la médecine, mais non seulement : dans ces temps sombres de repli identitaire où le racisme et le nationalisme s'affirment comme force politique un peu partout dans le monde, une caractérisation de l'être humain au-delà du lieu de naissance, de la couleur de la peau ou du sexe me semble très bienvenu !

    Autour le sujet :

    La Cité des Sciences et de l'Industrie propose une exposition sur le microbiote jusqu'au 4 août

    Microbiote dans la Cité des Sciences et de l'Industrie

    Je recommande également la lecture de l'excellent livre Le charme discret de l'intestin de Giulia et Jill Enders, Actes Sud. L'exposition Microbiote a été construite à partir de ce livre. 

     

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  • Em meu precedente post "Nosso cérebro original", eu havia comentado os doze primeiros minutos do documentário "Le ventre, notre deuxième cerveau". Muito rica em informações, essa primeira parte era, contudo, somente um preâmbulo para o conteúdo restante, que, na minha opinião, envolve questões metafísicas fascinantes. 

    As descobertas científicas que revelaram a existência de um segundo cérebro e as relações estabelecidas entre este e o de cima foram feitas a partir de um desfuncionamento nessa troca manifesta na síndrome do intestino irritável. Os cientistas constataram que os neurônios de um paciente doente são muito mais ativos que os de um paciente são. O sistema nervoso do paciente doente aparece como hiperativo, revelando uma neurose intestinal desencadeada por um evento traumático. A partir de então, o paciente é tratado com métodos usados nas disciplinas psíquicas dentre os quais a hipnose. A química interna de nosso corpo influencia nossa mente e até mesmo nossos sonhos, ambos sensíveis às emissões de serotonina produzida em nosso cérebro de baixo.

    Os questionamentos que se impõem nesse momento das pesquisas são, para mim, desestabilizantes. Pois, se o sistema nervoso entérico, ao enviar sinais ao nosso cérebro, pode afetar o modo como nos sentimos, eles podem também agir no modo como percebemos o mundo através da nossa capacidade de pensarmos positiva ou negativamente, de resistirmos à depressão ou à ansiedade. Estaria, nosso inconsciente, situado em nosso estômago? O próprio Freud já dizia que o ego talvez se encontrasse ali. Ora, o lugar onde o inconsciente se encontra importa pouco, mas essa afirmação revira de ponta cabeça a percepção que temos de nós mesmos. 

    Um aspecto revolucionário dessa descoberta é a possibilidade de tratar mais eficazmente doenças neurovegetativas como a doença de parkinson, que teria sua origem no estômago. Até então considerada como uma doença que atinge uma zona particular do cérebro conhecida como substância preta, os pesquisadores constataram que ela é frequentemente precedida de problemas digestivos cujos sintomas migram para o cérebro até atingir suas faculdades intelectuais. A impossibilidade de uma biópsia no cérebro de um ser vivo impediam estudos essenciais, a descoberta da origem da doença no estômago possibilitará a realização de biópsias em seres vivos que anteciparão o diagnóstico em até vinte anos, permitindo um tratamento que atrase a evolução da doença. 

    Embora as pesquisas sobre trocas neuronais sejam recentes no ocidente, a medicina tradicional chinesa trabalha com as ligações existentes entre as diferentes partes do nosso corpo há milênios. Ela regula os fluxos energéticos que circulam no corpo, através, inclusive, da acupuntura abdominal, que age sobre nossas funções cognitivas e regula nossas emoções. Para o Dr. Bo Zhiyun, especialista nessa técnica, é o cordão umbilical que exerce um papel central no crescimento do embrião mesmo depois de ter sido cortado: ele seria o centro de desenvolvimento do corpo humano, cuja coordenação exercida sobre o resto do corpo é ainda pouco conhecida. 

    Mas as revelações não param aí. Os pesquisadores que trabalham sobre o eixo cérebro-estômago descobriram que nosso tubo digestivo é habitado por cem mil bilhões de bactérias. Ou seja, um microcosmo no macrocosmo mais denso do planeta. Existem mais bactérias no nosso estômago que células em nosso corpo. Seríamos, assim, mais bacterianos que humanos. Em suma, somos um ecossistema! 

    Como essas descobertas são recentes, os pesquisadores ainda estão investigando como funciona esse ecossistema apesar de já lhe terem dado um nome: microbiota. Carregamos de um a dois quilos de bactérias que produzem 30% das nossas calorias. Elas digerem uma parte dos alimentos que comemos para fabricar energia e nos ajudam a verificar o que é tóxico ou não para nosso corpo. Sem elas não sobreviveríamos. Esses estudos nos informam também que as características da microbiota de cada um são únicas, como nossas impressões digitais, e sua constituição depende de diversos critérios que não estão relacionados ao sexo, à raça ou à idade e nem mesmo ao lugar onde nascemos. Distinguimo-nos uns dos outros de acordo com a população de microbiotas que nos habitam, e somos divididos em três grupos denominados enterótipos, cujo diagnóstico facilitará o tratamento de diversas doenças num futuro próximo.

    Essas descobertas são revolucionárias para a medicina, mas não somente: nesses tempos sombrios de recuo identitário nos quais o racismo e o nacionalismo se afirmam como força política, uma caracterização do ser humano para além do lugar do nascimento, da cor da pele ou do sexo será mais que bem-vinda! 

     

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  • A Festa de Babette é, para mim, um dos filmes mais poéticos de todos os tempos. Aqueles que não o assistiram ainda, corram para ver esse filme sensível. É a história de uma grande chefe de cozinha parisiense que foge da repressão instaurada com a Comuna de Paris em 1871 e se instala na costa dinamarquesa. Ela começa a trabalhar como doméstica para duas senhoras protestantes que se alimentam essencialmente de sopa e pão seco. Nessa comunidade puritana, a gulodice é um pecado capital. Quando Babette ganha na loteria, ela oferece um banquete digno de um grande restaurante estrelado aos moradores da comunidade com seus ganhos. Eles, por sua vez, combinam de não se deixarem enfeitiçar por essa refeição que consideram diabólica, mas o prazer gustativo os invade, eles deixam a mesa com uma expressão de felicidade em seus rostos. 

    A questão do prazer de comer sempre me interpelou por diversas razões. Como sou uma grande gulosa, eu e meu amigo Pedro tínhamos discussões intensas sobre o assunto, pois ele buscava sua elevação espiritual através do jejum e criticava, delicadamente, meu desejo carnal de gula. Eu logo pensava na festa de Babette e dizia para mim mesma que não era a única, que meu prazer culpado era compartilhado.

    A ciência vem hoje trazer respostas a meus questionamentos espirito-carnais em um surpreendente documentário que foi, mais uma vez, sugerido por meu amigo Omar, difundido no canal franco-alemão ARTE e cujo link se encontra abaixo. Há tanta informação nessa reportagem que falarei, agora, daquelas contidas nos primeiros doze minutos de difusão e voltarei mais tarde, em outro post, para abordar o conteúdo restante.

    Nosso estômago seria um condensado de inteligência que contém duzentos milhões de neurônios, o equivalente do cérebro de um pequeno animal de estimação, e centenas de bilhões de bactérias. É, assim, um órgão inteligente e sensível que deve decompor o alimento em minúsculas moléculas, o que requer uma grande potência nervosa. Os pesquisadores o chamam de segundo cérebro. Porém, para Michel Neunlist, pesquisador no Inserm de Nantes, o estômago seria nosso cérebro original, o primeiro cérebro e não o segundo, pois os organismos primitivos, pluricelulares, eram compostos simplesmente de um tubo digestivo, e foi dentro desse tubo que o sistema nervoso entérico se desenvolveu. Foi para se alimentar melhor que a evolução desenvolveu o outro cérebro, o que conhecemos como tal.

    O surgimento do encéfalo coincidiu com o dos olhos e das orelhas, úteis para procurar comida. Sem essa divisão de tarefas, passaríamos nossa vida digerindo. Ela foi feita com a domesticação do fogo, que tornou a digestão mais fácil através do cozimento dos alimentos que agem como uma pré-digestão, economizando dezesseis vezes mais energia, tornando o desenvolvimento do cérebro de cima possível.

    Contudo, essas tarefas são separadas somente teoricamente, já que os dois sistemas nervosos são conectados pelo nervo vago e conversam permanentemente, pois ambos utilizam os mesmos neurotransmissores, dentre os quais se encontra a serotonina. Ora, acontece que no cérebro de cima, a serotonina é a substância associada ao bem-estar, e no estômago - o cérebro de baixo, ela é associada ao trânsito intestinal e à regulação de nossos sistema imunitário. 95% da serotonina presente em nosso corpo é produzida no estômago, mais precisamente no tubo digestivo, e é em seguida liberada no sangue, provocando uma ação principalmente no hipotálamos, a zona que administra as emoções. 

    Todos já sentimos um friozinho no estômago antes de um evento importante ou diante do ser amado. Não é segredo para ninguém que as emoções podem influenciar nossa digestão e, consequentemente, o estado de nosso estômago. A novidade revelada por esses estudos é que o estômago é também suscetível de influenciar nossas emoções. Essa descoberta se impõe como um grande avanço no tratamento de doenças digestivas e na compreensão do nosso funcionamento como um todo. 

     

    Link para o documentário (em francês): Le ventre, notre deuxième cerveau

     

     

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