• Em nome da mãe

    Em nome da mãeHá algumas semanas, escrevi um post intitulado Que família tradicional? no qual dei alguns exemplos de linhagens que fugiam ao esquema considerado tradicional no ocidente onde o modelo pai-mãe-filhos é sacralizado. A família tradicional seria, assim, em diversas sociedades ocidentais e com diferentes graus de profundidade, apresentado como único modelo de constituição familiar válido. 

    As transformações desse modelo nas sociedades modernas são, contudo, inevitáveis, inerentes ao processo democrático, o conservadorismo que pretende colocá-lo como uma instituição imutável é contraproducente e até mesmo incompatível com o princípio constitucional que afirma que todos são iguais diante da lei. Se, até então, a dominação masculina implícita na família patriarcal era considerada "natural", as reivindicações feministas de igualdade de direitos vêm modificar radicalmente essa estrutura. 

    Aqui na França, as primeiras denúncias de misoginia foram feitas, segundo Simone de Beauvoir, no século XV pela escritora Christine de Pisan em seus livros Cité des Dames (1404) e Livre des trois vertus à l'enseignement des dames (1405). Desde então, muitos direitos foram conquistados pelas mulheres, alguns dos quais são hoje totalmente banalizados, mas que haviam sido considerados uma afronta na época em que foram reivindicados: o direito à educação escolar, o direito ao voto, o direito a ter uma conta em banco, o direito de dirigir etc. 

    Embora todas essas conquistas sejam notórias, ainda temos um longo caminho pela frente na luta contra o machismo que eu chamaria de "residual", aquele escondidinho no imaginário social expresso em gestos, piadas, olhares, atitudes quase imperceptíveis pois não são vistos como tal, mas cuja persistência seria uma barreira para uma sociedade verdadeiramente igualitária, sem entraves, num futuro próximo. Esses comportamentos inconscientes são os mais difíceis de ser combatidos porque nem sempre podem contar com a força da lei que age como um deslegitimador progressivo, até que os membros da sociedade em questão entendam, uma vez por todas, que tal ato é inapropriado e ofensivo. 

    Consciente desse processo, fiquei muito surpresa quando descobri que, aqui, aos filhos é atribuído o nome do pai. Somente o do pai. Essa patrilinearidade parece não incomodar as dezenas de mulheres com as quais conversei sobre o assunto. Amigas que têm dois (ou mais) filhos de pais diferentes não se questionam sobre o fato de seus filhos não possuírem nada que os identifique como irmãos naquilo que constitui sua identidade primordial: seu sobrenome. Eles tampouco compartilham esse traço identitário com primos por parte de mãe. A individualidade materna desaparece, assim, sob o peso da administração pública, diluindo-se, pouco a pouco, sob uma linhagem patrilinear não questionada até então. Grande paradoxo numa sociedade tão cartesiana. 

    Meu filho nasceu no Brasil onde foi registrado equifinalizavelmente com meu nome e o do seu pai. Porém, nos trâmites de registro no estado civil francês, meu nome se perdeu, escafedeu-se nos meandros da lei, onde foi registrado somente com o nome de meu marido. Senti uma estranha sensação ao ver o nome completo do meu filho sem a marca da minha existência. Entrei com um processo civil solicitando que meu sobrenome fosse incluído no registro francês de meu filho. Há dois dias recebi o deferimento do mesmo. O Estado me deu razão, embora meu gesto seja socialmente percebido por aqui como mais uma das minhas esquisitices, atribuído a um hábito cultural. Minha ação não foi por hábito cultural, meu ato não foi automático nem espontâneo, mas levado por uma profunda convicção igualitária. Em nome da mãe. Em nome de todas as mães.

     

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