• A tradução às avessasHilário. Esse seria o qualificativo que eu daria ao livro " Les Nègres du traducteur ", de Claude Bleton, caso me perguntassem, sugestão da minha colega e amiga Diana Sorgato. Não sei se na época de sua publicação em 2004 esse livro foi divulgado, comentado ou se teve qualquer repercussão pois eu não morava aqui esse ano. Mas posso afirmar que ele merece ser lido. Não somente por ser engraçado - eu literalmente chorei de rir como há muito tempo não fazia, mas sobretudo porque levanta questões centrais e polêmicas que dizem respeito à tradução literária e ao papel do tradutor. 

    O título do livro, que traduzido literalmente para o português seria "Os ghost-writers do tradutor", revela a louca incongruência da trama. O tradutor Claude Bleton conta a história de um colega megalômano ávido de reconhecimento e sucesso que decide impor suas traduções para que autores escrevam seus respectivos originais, gerando situações insólitas e muito engraçadas. Só não sei se seriam tão engraçadas para não tradutores. 

    O autor do livro tem uma inquestionável imaginação que transborda para muito além da trama principal, pois ela se derrama pelas pequenas histórias criadas e escritas por sua personagem principal, o tradutor megalômano, que se transformam em sucessos de venda. As primeiras perguntas que me vieram à mente são provavelmente irrelevantes, pois são pessoais e se referem ao autor do livro: até que ponto Claude Bleton reprimiu sua exuberante imaginação em seu trabalho de tradução durante sua longa e produtiva carreira - mais de cem livros traduzidos do espanhol para o francês? Essa repressão teria provocado frustração? Ou o desejo de uma inofensiva e divertida vingança materializado nesse livro? 

    Porém, o que mais intrigou a tradutora que sou foi não ter sabido (ou conseguido) distinguir a existência ou não de ironia no que diz respeito à margem de liberdade que um tradutor deve adotar diante do original na adaptação de um texto ao contexto de chegada. Ora, a personagem de Claude Bleton descobria "pouco a pouco o quanto a tradução era um ato de recriação" (tradução quase literal da frase). Nessa reelaboração do texto, o tradutor megalômano da trama modifica o nome das personagens do livro original,sua profissão, substitui o estilo indireto pelo direto introduzindo diálogos que não constavam no original, ao ponto de trocar a função da personagem principal de um livro sobre a tauromaquia que deixou de ser toureiro para "evitar ter problemas com a sociedade protetora dos animais" causando surpresa ao autor do livro nessa louca história. Para mim, parecia definitivamente cômico.

    Sei que esse tema é recorrente, que existem escolas que defendem opiniões divergentes e muitas vezes até contrárias sobre uma eventual "recriação" do texto original. Eu teria lido o livro convencida de que o autor estaria sendo irônico quanto à liberdade assumida por alguns tradutores, se eu não tivesse lido uma entrevista feita no período de lançamento do livro. Nela, Claude Bleton afirma que um tradutor deve "desconfiar do texto original", considerando-o uma prisão da qual se deve escapar "pois devemos criar um outro texto que não tem nada em comum com o texto original, não são as mesmas palavras, a mesma língua, nem o mesmo universo linguístico, cultural, econômico etc."

    Minha admiração por Claude Bleton, grande tradutor e talentoso autor de um livro tão inteligente e divertido, manteve-se intacta depois de eu ter lido essa entrevista. Mas não vou negar que não me reconheço nessa descrição do nosso trabalho. Embora meu questionamento se renove em cada nova tradução, embora eu possa perder horas para decidir sobre a adequação do uso de uma única palavra, no que diz respeito à relação estabelecida com o texto original, sou categórica: a minha será sempre de cumplicidade e respeito pelo autor. Na minha modesta opinião, a desconfiança sugere um aspecto defensivo, uma distância que seria contrária ao comportamento que eu, pessoalmente, costumo assumir ao abraçar uma obra da qual me aproprio durante e depois do término da tradução. 

    Referências: Les Nègres du traducteur, Claude Bleton, Éditions Métailié, Paris, 2004.

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